domingo, 18 de dezembro de 2011

Diálogos do espelho



Alugou um apartamento no centro da cidade. Três quartos, sendo que habitaria apenas um. Mandou tirar toda a mobília:-"Queimem tudo se for necessário", deixando apenas um espelho na parede de um deles. Nele podia ver-se inteiro. 
Se aproximou para roçar a barba e reparar pacientemente nos traços do próprio rosto, e se afastou para ver como se assentavam no corpo todo.
Afastado parecia melhor.
Talvez tivesse que ser assim ("como se morrer fosse doce") ou como um personagem de um capítulo de um livro que nunca termina. 
(Se aproximava e se afastava)- Como se dançasse, e sua imagem também dançava do outro lado do espelho.
E aos poucos iam sumindo, as linhas do rosto, todos os traços, até se transformar numa mancha lisa e uniforme.Nenhum sinal.

Nunca mudara de fato. 

Imagem: Juliette Binoche

sábado, 17 de dezembro de 2011

Como se morrer fosse doce

         E assim o fizera, apertando o gelo contra sua cabeça e depois o passando por entre os lábios (era sangue e não água). Quando lhe perguntaram o que pretendia ele respondeu: Nada, e se gostaria de ir a budapeste, e ele negou até o fim,e terminou por apertar a cabeça contra o gelo.
De súbito se deparou com o silêncio. Caiu em contradição consigo mesmo (era sangue e não água) e voltou a sua auto condenação diária, mas mesmo que o fizesse todos os dias, e esmagasse os miolos com dois tijolos não deteria o tremor das víceras, e nem guiaria o percurso de seus olhos (que o condenariam), ademais apertava também as unhas das mãos contra a própria pele, mas não lhe pertencia o esquecimento.
Encostou a cabeça sobre a pia, sorriu.
Como se morrer fosse doce.

Baseado no filme "Não Amarás" de Kieslowski
rugas despudoradas

entrei no armazém amarelo, modorrento. bruxuleante luz no teto. quase nada de produtos a venda. uma senhora. as rugas mastigavam, despudoradas, o seu rosto: protocolo carimbado pelo tempo.
cerveja preta, pedi.
foi buscar. nunca mais voltava. despejou o líquido em meu copo. pensei reconhecê-la. teimavam seus disfarces. foi atender as moscas, únicas clientes. o espelho da parede oposta ao balcão onde estava me eram úteis. expunham ainda mais a precariedade daquela presença: caroço humano.
lembra-se de mim?, pensei.
chamei-a. virou-se, quase não dobrável.
ela sabe que sou eu?, pensei.
anos atrás eu conheci uma menina, 14 anos.
ainda bebê, deu-me de presente.
não me reconhece?, perguntei.
fez uma expressão de dúvida fitando a rua como se de lá a resposta. passou as mãos sobre a toalha de plástico com flores apagadas limpando farelos de comida sobre a mesa.
nunca mais, filho, ninguém soube de mim, ela disse

Luiz Felipe Leprevost
Eram suas as derrotas. E também as vitórias.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

O doce e o amargo

"Beber o suco de muitas frutas
O doce e o amargo
Indistintamente
Beber o possível
Sugar o seio
Da impossibilidade
Até que brote o sangue
Até que surja a alma"

Sangue Latino

Jurei mentiras
E sigo sozinho
Assumo os pecados
Uh! Uh! Uh! Uh!
Os ventos do norte
Não movem moinhos
E o que me resta
É só um gemido
Minha vida, meus mortos
Meus caminhos tortos
Meu Sangue Latino
Uh! Uh! Uh! Uh!
Minh'alma cativa
Rompi tratados
Traí os ritos
Quebrei a lança
Lancei no espaço
Um grito, um desabafo
E o que me importa
É não estar vencido
Minha vida, meus mortos
Meus caminhos tortos
Meu Sangue Latino
Minh'alma cativa

Olhos de cão azul

"[...] De repente, um profundo rumor sacudiu as entranhas e as pezuanhas se afundaram no barro com maior força. Logo ficou imóvel durante meia hora, como se estivesse morta, mas ainda não desabara porque a impedia o costume de estar viva, o hábito de estar em uma mesma posição sob a chuva, até que o costume foi mais fraco do que o corpo. Então dobrou as patas dianteiras (erguidas , ainda , em um último esforço agônico, as ancas brilhantes e escuras) , afundou o focinho  babante no lodaçal e se rendeu , afinal , ao peso de sua própria matéria, em uma silenciosa, gradual e digna cerimônia de total desabamento. [...]"   Isabel vendo chover em Macondo

sábado, 19 de novembro de 2011

Olhos de cão Azul

"Sorriu. (Sorriu.) Mostrou - a sí mesmo - a língua. (Mostrou - ao da realidade - a língua.) O do espelho a tinha pastosa, amarela: " Você anda mal do estômago", diagnosticou (gesto sem palavras) com uma careta. Voltou a sorrir. (Voltou a sorrir. ) Mas agora ele pode observar que havia algo de estúpido, de artificial e de falso nesse sorriso que lhe era devolvido. Alisou o cabelo. (Alisou o cabelo) com a mão direita (esquerda), para, imedatamente, voltar o olhar envergonhado (e desaparecer). [...]" Diálogo do espelho

Olhos de cão azul


 "Seu pensamento ia sempre pelos úmidos corredores escuros, sacudindo dos retratos o pó seco coberto de teias de aranha. Inavariavelmente se lembrava do menino. Lá o imaginava , sonâmbulo, debaixo da grama, no pátio, junto a laranjeira , com um punhado de terra molhada dentro da boca. Parecia vê-lo em seu fundo argiloso, cavando para cima com as unhas, com os dentes , fungindo ao frio que lhe mordia as costas; procurando a saída do pátio por esse pequeno túnel onde o meteram com os caracóis. No inverno ouvia-o chorar com seu pequeno pranto, sujo de barro, transpassado pela chuva. Imaginava-o inteiro. Tal como o haviam deixado cinco anos atrás, naquele buraco cheio de água. Não podia pensar que se decompusera. Ao contrário, devia estar belíssimo navegando nessa água espessa, como em uma viagem sem saída. Ou o via vivo, mas assustado, medroso por sentir-se só, enterrado em um pátio sombrio. Ela mesma se opusera a que o deixassem ali, debaixo da laranjeira, tão perto da casa. Tinha medo. Sabia que nas horas em que a perseguisse a vígília ele o adivinharia. Regressaria pelos amplos corredores a pedir-lhe que o acompanhasse , a pedir-lhe que o defendesse desses outros insetos que estavam comendo a raiz de suas violetas. Voltaria para que o deixassem dormir  a seu lado como quando era vivo. Ela tinha medo de senti-lo de novo , depois de ter pulado o muro da morte. Tinha medo de roubar essas mãos que o menino traria sempre fechadas para aquecer seu pedacinho de gelo. Ela queria ,depois que o viu convertido em cimento , com a estátua do medo caída sobre o limo, queria que o levassem longe para não o recordar à noite.E, apesar disso, haviam-no  deixado ali, onde agora estava impeturbável, desprezível, alimentando seu sangue com o barro das minhocas. E ela tinha que se resignar  a vê-lo regressar do seu fundo das trevas. Por que sempre , invariavelmente, quando perdia o sono , punha-se a pensar no menino, que a devia estar chamando, do seu pedaço de terra para que o ajudasse a fugir dessa morte absurda. [...]" - Eva está dentro do seu gato - Gabriel García Márquez  

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Olhos de cão azul

"Agradavelmente, envolto no tíbio clima de serenidade cobiçada, sentiu a leviandade de sua morte artificial e diária. Mergulhou numa amável geografia, num mundo fácil, ideal; um mundo como que desenhado por um menino, sem equações algébricas, sem despedidas amorosas e sem forças de gravidade." Gabriel García Márquez

sábado, 12 de novembro de 2011

E ela contemplava a hélice que a fazia girar no meio do turbilhão.

domingo, 6 de novembro de 2011

"Por que nós?"

Era o rasgo.
Tomasse ácidos, quem sabe
tornar-se algo, outro
que esse lívido,
plácido, quem sabe
distante, quem sabe
o eu , conciso, lacônico, indiviso
Um algo.
Porque de nós,
mero vício
linguístico.

Encerrando ciclos

"Eu queria avançar para o começo"

Manoel de Barros

sábado, 29 de outubro de 2011

Ao som dos bandolins

"Mas ela teimou e enfrentou o mundo se rodopiando ao som dos bandolins" 


Oswaldo Montenegro

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Com dois pés firmados sobre o cadafalso, prontos para desabar.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

"O rapaz chegou-se para junto da moça e disse:
-Antônia, ainda não me acostumei com o seu corpo, com sua cara.
A moça olhou de lado e esperou.
-Você não sabe quando a gente é criança e de repente vê uma lagarta listrada?
A moça se lembrava:
-A gente fica olhando...
A meninice brincou de novo nos olhos dela.
O rapaz prosseguiu com muita doçura:
-Antônia, você parece uma lagarta listrada.
A moça arregalou os olhos, fez exclamações.
O rapaz concluiu:
-Antônia, você é engraçada! Você parece louca."



Manuel Bandeira

Alguém disse:

"A parte mais fácil é o futuro."

domingo, 23 de outubro de 2011

"Há algo mais forte que todos os exércitos do mundo. E chegou a hora de pôr isso em prática." Victor Hugo

Guardar


"Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa de vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro
Do que um pássaro sem voos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarde um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar."

Machado, G. 

domingo, 16 de outubro de 2011

"Voa um bispo, voam as torres, salta o cavalo, caem os peões e, no meio do tabuleiro, imensos como leões de antracito, os reis permanecem imóveis, ladeados pelo mais límpido e final e puro dos exércitos. Ao amanhecer as lanças fatais se quebrarão e a sorte será conhecida, haverá paz." J. Cortázar

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Melhor do que não saber
é nunca saber.
É a melhor forma
mas é a forma mais triste.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Dar ao indelével o que é do indelével. Dar ao efêmero o que é do efêmero.

domingo, 9 de outubro de 2011

"Então, exausto, sem nenhum grito, deitou-se sobre a pedra escura da rua, ou da escarpa mais alta, ou da lua mais miserável e suja."

Eucanaã Ferraz

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

"O dia vai morrer aberto para mim" Manoel de Barros

domingo, 2 de outubro de 2011

A maõ selvagem

"a mão selvagem pássaro-livro da febre
a mão selvagem chão de águas tormentosas
a mão selvagem montanhas crescendo dos dedos
a mão selvagem abismos do arrancar das peles
a mão selvagem faca que estapeiafaga dentro do sangue
a mão selvagem desvairado polvo gozando tintas
a mão selvagem mais a argila que deus a mãe do mundo "


Luiz Felipe Leprevost
A cada dia lhe escalpelavam mais a sua alma, sendo esta a sua maior ferida.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

sábado, 17 de setembro de 2011

O Meu, o Eu, o Teu e o Nós

Não posso beber tantas doses de você, nem você de mim, cada um no seu tempo, creio que assim podemos nos encontrar.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

A flecha

"Já não é o arqueiro que atira a flecha; o interior da natureza é que irrompe do mundo através da ausência perfeita do ego do arqueiro e solta a corda retesada" Da Natureza Humana -E. O. Wilson

Obs: É porque se deixa ser guiado por forças ocultas, e nem por isso cegas, e nem por isso belas ou não belas, mas são elas, sua causa, seu propósito, sua ordem.

E é assim que se desapropria-se de uma idéia, a partir da degeneração, da retração da nossa própria alma (se ainda conseguir alcançá-la, resgatá-la)

E o arqueiro adentra na sala: A flecha tolamente disparada, ainda a sente em seus dedos, embora não mais a tenha (embora nunca a tenha pertencido)

E ela é, sem perceber, a própria flecha, lançada contra o interior dos ventos, puxada pela gravidade, sem acerto, entregue a inércia do movimento, não interrompido, sem anteparo, sem aconchego, em sua melhor definição...mas ainda paira sobre o ar...

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Satélite

- Já reparou que toda a vez que nos encontramos, a lua acende mais alta, grisalha e robusta?
-Quer dizer que ela já desconfiava de tudo?
- Mais ainda: ela nos aplaude.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Rascunho de poema rápido musicado para piano a quatro mãos

Talvez, mas só talvez, quem sabe, você fosse mesmo
o meu intervalo ascendente consonante e perfeito
de extensão infinita

mas adivinha só...eu tenho feito tudo errado
e transformado a nossa melodia em ruído.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

E está lá a rabiscar suas vitórias no papel, aquelas que não pode ter, pois a sua pior fraqueza era ser inocente, e querer que entendessem seu arcaico modo de persuasão (nenhum). Era preferível que vivesse do artifício da literatura, que se esquivasse entre livros e papéis: “Assim ,de longe não parecia nada, de perto, um mero malabarismo - com fogo, diga-se de passagem.” Prometera a sí mesma não comentar mais nada sobre o assunto, mas era ruim com promessas, e a quem viesse tomar satisfações, nem embutia desculpas nem coisa nenhuma...mas a verdade é que tinha aprendido dessa inconstância com o vento.

domingo, 4 de setembro de 2011

Sobre a sincronicidade

fevereiro, 2010

Eu já comentei a respeito da sincronicidade? Bom, a sincronicidade das coisas me assusta.
Existe algum tipo de conexão estranha entre as coisas, acho que isso está ligado aquilo que eu disse sobre a idéia surgir conforme a necessidade dela. É como se um coisa chamasse a outra, e em mundo de inúmeras possibilidades, por conta das circunstâncias, estas ficam reduzidas, então tudo caminha em um mesmo sentido, dando a ilusão de uma lógica indiscutível, (e quem disse que não é? e quem disse que não poderia ser?),"Quando o mistério é muito grande ninguém ousa desobedecer", nem eu... 

sábado, 3 de setembro de 2011

Quando surgir um ou outro indício do indelével desconfie, desconfie das pedras da calçada, e de toda causalidade, do que vem antes e do que virá depois, porque estas convicções não passam de uma espécie de ilusionismo, um teatro de sombras, a quem acreditamos por meio de uma ingênua superstição.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

  Um amigo havia me avisado sobre a inconstância do vento: "Sendo você um barco a vela , é possível que se perca, mas de que adianta estar preso a um cais que não te pertence?"

Figura: Van Gogh

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Engole teu coração
ele é cascata, redemoinho:
não presta.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Os cabelos brancos de minha mãe (rascunho)

Assim ó, se você quisesse eu podia te contar uma história engraçada, engraçada mas que na verdade, antes dela ser engraçada ela era uma história triste. Eu podia te contar atrás de um muro ou num sussurro que é pra mais ninguém ouvir, eu podia te contar em meio a um poema e daí você nunca ia saber se era verdade ou não. Sequer importava se a história fosse fato consumado ou pura irrealidade, se não é dessa mesma penumbra que nos alimenta a vida. Porque são histórias e servem para serem contadas, a palavra bem ou mal deve ser dita, para que nada se perca... Pois era mesmo uma história triste , mas de um cômico irresistível.

“EU NÃO VI SURGIREM OS CABELOS BRANCOS DE MINHA MÃE”

-Mas...cabelos brancos?

- E o que é que você esperava com meus 40 e poucos anos?

Éramos ambos passageiros, última parada antes do adeus,
 Lhe perguntei:
-
Espera... E como é que você dorme?

Risos, pausa ,interjeição, pausa, inspiração, pausa:

- De pé

domingo, 28 de agosto de 2011

Engole teu coração.
Engole teu coração até que ele se esqueça que lhe cabe.
Engole teu coração enquanto é tempo,
para que vire fumaça e se espalhe no vento,
para que se esface-le feito algodão.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Á um desconhecido - parte 5

Hoje colocaram caco de vidro em cima do muro da casa de Evídio, e bem em frente, no portão, uma placa pendurada: "Aluga-se". Decorei seu número, pensei em ligar e perguntar se dentro da casa havia alguma assombração (só a alugaria sob esta condição), ao invés disso, escrevi uma carta dizendo: - Querido Evídio (ido ídio) eu sei o que você é, um fantasma, eu sei, mas não se preocupe, seu segredo estará bem guardado comigo.Assinado: A.S.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Dançamos mal - embora nunca tenhamos tentado - teus braços não se encaixam bem nos meus, meus passos te assustam, te fazem tropeçar até cair, tua velocidade é outra, e sobretudo somos descordenados, e ao final, você irá recuar, irá inventar a distância, até que eu enfim me afaste, até que a música se acabe.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Conversa com o Psiquiatra

(Maio 2009)

-Onde estava?
Perguntou minha mãe secamente.
-Com o único homem da minha vida...
Mirei seus olhos arregalados e completei:
- Meu psiquiatra!

Naquele dia ele havia me perguntado o que havia feito a tarde toda:
- Fiquei criando dúvidas existenciais em meus peixes.
- Como?
- É, assim, eu coloquei um outro peixe em outro aquário e do lado dele um espelho. Ele ficou olhando para os dois, não sabia qual era real, pois a única prova que tinha, era o que podia ver, e os dois eram idênticos.
- Que maldade fazer isso com um peixe!
- Talvez, mas depois quando os juntei, ele é que foi mal. Atacou o outro peixe, talvez ele não aceitasse a realidade..
Ficou pensativo, riu e por fim disse:
- Ah, deixa pra lá, você e suas idéia malucas!

Das nostalgias

Ela me dizia: "História é Saudade", e que todas as coisas que existem hoje eram fruto do que foi, e mais, que se não fosse pela vaidade dos grandes reis como haveríamos de saber o que acontecera com seus súditos? "Acaso Nero seria lembrado se não tivesse incendiado Roma?" e voltava a me repetir: "Saudade é História" e de como tudo que estava acontecendo viraria história e, portanto, haveria de ser lembrado anos mais tarde...E justamente anos mais tarde ela partiu, um oceano de distância, dois continentes, então decidi lhe mandar uma carta dizendo apenas: "Sinto saudades", e ela me respondeu ainda na mesma folha: "Não confunda, não confunda jamais saudade com Nostalgia."

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Os escapistas perfeitos

"Felizes são os que escolhem, os que aceitam serem escolhidos, os belos heróis, os belos santos, os escapistas perfeitos." Júlio Cortázar

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O jogo da Amarelinha

" O mero fato de nos interrogarmos sobre a possível eleição já vicia e perturba o elegível. [...] Entre o yin e o yang quantos eões? Do sim ao não, quantos talvez? Tudo é escritura, ou seja, fábula. Mas para que nos serve a verdade que tranquiliza o honesto proprietário? A nossa verdade possível tem de ser invenção, ou seja, escritura, literatura, pintura, escultura, agricultura, piscicultura, todas as turas deste mundo. Os valores, turas, a santidade, uma tura, a sociedade, uma tura, o amor , pura tura, a beleza, turas das turas. Num dos seus livros, Morelli fala do napolitano que passou anos sentado á porta de sua casa , olhando um parafuso no chão. De noite, pegava-o e guardava-o debaixo do colchão.O parafuso foi primeiro uma simples piada, uma gozação, uma irritação comunal, reunião dos vizinhos, sinal de violação dos direitos cívicos, e finalmente um encolher de ombros, a paz, o parafuso foi a paz, ninguém podia passar pela rua sem olhar de soslaio para o parafuso e sentir que ele era a paz. O sujeito morreu de uma síncope, e o parafuso desapareceu assim que os vizinhos chegaram. Um deles o guardou, talvez o olhe em segredo , o estude por todos os lados, voltando a guarda-lo e indo para a fábrica, sentindo algo que não compreende, uma obscura reprovação. Só se acalma quando retira o parafuso do seu esconderijo e o olha, fica olhando até ouvir passos e ser obrigado a escondê-lo rapidamente. Morelli pensava que o parafuso devia ser outra coisa, um deus ou algo assim. Solução demasiadamente fácil. Talvez o erro tenha sido aceitar que esse objeto fosse um parafuso tão somente por ter a forme de um parafuso. Picasso pega um automóvel de brinquedo e o converte no queixo de um cinocéfalo. É bem possível que o napolitano fosse um idiota, mas também pode ter sido o inventor de um mundo. " [...]

Julio Cortazár  

domingo, 7 de agosto de 2011

Tentando alcançar o imaginado, os braços se perdem no ar

O que dizer do pertencer se nem bem conhecemos a natureza real das coisas? Se só possuímos uma idéia delas? As coisas em sí são simples, é a idéia que formamos em cima delas que as tornam incabíveis, complexas, e partir desse princípio, assistimos ao caos moderado que nos rege.
Tentando alcançar o imaginado, os braços se perdem no ar.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

O sentimento do mundo

"Tenho apenas duas mãos, e o sentimento do mundo"

Mãos Dadas

"Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.
Não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
Não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens
presentes, a vida presente. "

Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

A realidade não bate à porta

A realidade não bate à porta. Os mais reais não têm tempo a perder com aspirações e desejos, com a beleza do mundo, com o sentido das coisas.Filosofia, arte, poesia, são luxos puramente burgueses. Os mais reais se submetem a serem reais, desaprenderam a sonhar ou nunca tiveram espaço para fazê-lo. Os mais reais teimam em sobreveviver acima de tudo, porquê os mais reais só conheceram o medo. .
A realidade não bate à porta, a arromba.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Apenas começamos

"Reconheço meu pesar
Quando tudo é traição,
O que venho encontrar
É a virtude em outras mãos[...]

Tudo passa, tudo passará
[...]
O mundo começa agora
apenas começamos"


Renato Russo -  Metal Contra as Nuvens

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Quanto a ciência

"Sabê-lo-íamos algum dia? E saberiamos o porquê as massas se atraem? a atração era uma palavra cômoda que servia para explicar tudo ; seria mais do que uma palavra? Eramos realmente mais sábios do que os alquimistas de carmona? tinhamos esclarecidocertos fatos que eles ignoravam, e os haviamos agrupado numa dada ordem. mas tinhamo-nos adentrado um só passo no coração misterioso das coisas?a palavra força seria mais clara do que a palavra virtude? a palavra atração mais do que a palavra alma? E quando denominavamos eletricidade a causa destes fenômenos que provocariamos esfregando âmbar num pedaço de vidro, estavamos mais bem informados do que quando chamávamos Deus a causa do mundo?" 

"Quanto as misteriosas realidades que escapam aos nossos sentidos: As forças, os planetas, as moléculas, as ondas, não eram senão um imenso vazio cavado por nossa ignorância e que escondíamos com palavras. Nunca a natureza nos mostraría seus segredos; ela não tinha segredos; nós é que inventávamos perguntas e fabricávamos respostas a seguir: e nunca descobriríamos no fundo de nossas retortas senão os nossos próprios pensamentos"

Simone de Beauvoir - Todos os homens são mortais

Das Crenças

    "Numa de nossas ocasionais conversas fiadas, ontem de noite, disse-me o porteiro: " rato depois de velho vira morcego". Olhei-o atentamente. Era um velho porteiro. Não estava brincando. Devia ser teimoso como todos os velhos. Seria pedante da minha parte tentar convencê-lo de que a sua História Natural não o era muito...Deixá-lo! Afinal, por que os ratos velhos não haveriam de virar morcegos, da mesmíssima forma que as velhas solteironas viram postes no fim de linha? Da mesma forma que os meus leitores desatentos viram fumaça inconsistente e os leitores incrédulos não viram nada...(E daí, você viu ou não viu?!) Pois é uma grande coisa escutar sem contradizer.
   [...]
   E, em criaturas de outro estágio cultural, também existem crenças de que não me seria lícito duvidar. Imaginem se, por acaso, com meus argumentos, eu conseguisse destruí-las! Que teria para lhes dar em troca?
[...]"

Mario Quintana

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Capitú se apaixona pelo mar

( Junho de 2010 )


Em que olhos encontrarei tal imensidão?
Em que cachos de cabelo a circuferência de tuas ondas?
Em que boca igual saciedade que trazes à minha sede?

O homem é uma mortal aventura,
enquanto o mar, avança, recua,
mas não cessa

jamais.

figura: Van Gogh , Seascape at Saintes-Maries
Sabia que deveria seguir por um caminho outro, só não sabia onde, pois se dera conta que todas as ruas e avenidas tinham o seu nome.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Sejamos francos, ainda que franqueza pouco tenha a ver com verdade, ou melhor, realidade. E sejamos pouco acomodados, ainda que nossa inquietação, nossa revolta, nada tenha a ver com violência, e seja só desepero, por nós, pelos outros, e principalmente pelos outros, que são o que nos falta. - Sejamos fortes.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Era sempre assim, volta e meia desmanchava tudo e a palavra já não significava. Significava mais o silêncio, que o silêncio é mais antigo, e portanto, guarda mais sabedoria dentro de sí.
O rei era tão orgulhoso que não tirava a coroa nem na hora de dormir. Em sonhos traiçoeiros se imaginava súdito, mas ainda assim, servo de sí mesmo.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Das desmemórias

O menino, curioso das coisas do mundo, havia perguntado ao bisavô como ele havia chegado a certa idade avançada de cento e trinta anos,e ele respondeu:
" Eu sempre tive maior talento para para esquecer do que para lembrar, para desaprender do que para aprender. Antes eu tinha medo que a solidão viesse me engolir e depois guspir meus ossos fora, e tinha medo da morte. Mas então me esqueci da solidão, me esqueci da morte, e a morte esqueceu de mim, e foi assim que se deu."

terça-feira, 19 de julho de 2011

E se perguntasse quais dos meus escritos foram para tí eu diria todos eles, o que você escolhesse para te embalar o sono ou te fazer rir, pois que eu prefiro ser tua comédia do que nada.
Quem sabe se você pudesse habitar por um dia meu corpo, e deixar ali dentro uma parte de sí, mesmo que fosse aquela que você mais detesta, mesmo que fossem teus maiores enganos, teus medos, tuas dúvidas, ou se eu pudesse fazer o mesmo, e adentrar por debaixo de tua pele, só assim talvez eu viesse a te compreender, e até fazer parte do teu mistério, e você do meu...E quem sabe teu corpo viesse salvar meu corpo, e tua alma salvar a minha alma.

domingo, 17 de julho de 2011

Oração

Meu deus, quem senão você pode lidar com essas coincidências? e se não há de concordar comigo que só um deus, por descuido, faria coisas assim, tão desordenadas? beirando um mal improviso, deixando o amor esperar? (se não é por isso mesmo que estamos aqui, então porquê? se não é também o amor uma forma de revolução, ou se tão somente por ele , ou pela falta dele, o que nos transforma?)
Digo sim, em alto e bom tom, pois confesso e peço que esclareça,  pois que estou ciente de que sei poucas coisas, mas desconfio de muitas, e desse desconfiar me apeguei cedo, pelo que passei a duvidar da maioria delas...Mas disso não, meu deus, disso não...que do amor a gente não discorda de nada, só obedece.

terça-feira, 12 de julho de 2011

A casa

No dia posterior a mudança lhe fizeram um telefonema dito urgente, dizendo que haviam roubado a casa:
- Mas não havia nada dentro dela!, ele disse.
Ainda assim os vizinhos insistiram para que viesse o mais rápido possível.
Quando chegou lá entendeu a urgência do chamado: Haviam levado a casa inteira, as paredes, o telhado, a cerca, tudo,
e não deixaram para trás
nem as pedras da calçada.

domingo, 10 de julho de 2011

sobre todas as coisas e coisa nenhuma (manifesto II)

Queria retornar a ser tão viceral quanto era antes, admirava isso nos outros, aqueles que ainda conseguiam sentir, aqueles que ainda se entregavam a algo a que ingênuamente acreditavam, seus olhos haviam visto demais, enxergado demais, seus olhos cansados, que já nem eram seus.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Saramago

"Escrever é fazer recuar a morte, é dilatar o espaço da vida."

domingo, 3 de julho de 2011


Imagens: Henri Cartier Bresson e Alfred Eisenstaedt

quinta-feira, 23 de junho de 2011

O outono permanece parte 2 (rascunho)

Quando éramos amigos, o outono gostava de me contar quantos pássaros haviam atravessado suas tardes.
Um dia o outono foi embora, e pensei que nunca mais fosse encontrar o outono. Foi quando que ele apareceu pra mim, nítido, tinha em sí uma calma branca, uma melancolia, típica do outono, e descobri, fora um descuido, uma aparição não calculada, desapercebida, por dentre as folhas secas da calçada, e o vento. Não quis avisar ao outono que ele tinha retornado, por que na verdade nunca quis que ele fosse embora, mas o outono não me pertence, o outono é do mundo, é de um algo, esse algo de que lhes havia falado.
Devo lhes confessar agora que menti quando disse que o outono tinha dias e noites de mesma duração. As minhas tardes com o outono duravam anos. E de noite, bem como as botucas, eu sonhava, não com pernas , mas com as tardes que passaria com o outono, até ele ir embora novamente. Menti também quando disse que o outono tinha ido embora repentinamente, eu sempre soube quando iria partir, ele me dizia:

-Hoje quando o sol mergulhar no horizonte, irei partir.

Mas eu nunca quis acreditar que o outono pudesse partir assim, que soubesse me deixar.
Descobri tardiamente que o outono podia ser tão rígido, tão rigoroso quanto o próprio inverno.

uni-verso

"Treme a folha no galho mais alto" - escrevo. Paro e sorvo, de olhos fechados, o cheiro bom da terra, do capim chovido... Parece que quer vir um poema... Abro os olhos e fico olhando, interrogativamente, a linha que escrevi no alto da página. Depois de longo instante, acrescento-lhe três pontinhos. Assim não ficará tão só enquanto aguarda as companheiras. O vento fareja-me a face como um cachorro. Eu farejo o poema. Ah, todo mundo sabe que a poesia está em toda parte, mas agora cabe toda ela na folha que treme.
Por que não caberia então em único verso? Um uni-verso.
Treme a folha no galho mais alto.
(O resto é paisagem...)
Mario Quintana

terça-feira, 21 de junho de 2011

O Coronel
Frente a batalha
Canta aos Lírios
- Estes, que estão aí, a altura do umbigo
(Acontece que o Coronel é de estatura mediana, mas não admite)

O Coronel, canta aos Lírios
Frente a batalha
Desafina um pouco, se cala
deixa que os pássaros o façam por ele
"Melhor assim" ele diz

O Coronel
                 Frente a batalha
Engraxa as botas
(obs: Isso porque por dentro já não há mais nada a se fazer)

e por fim:
O Coronel , frente a batalha
                                            Desiste
Trapaceia, pede água
Só desanda, não rima

poetas por aí

"Do mar a Marte
tenho que saber
qual rochedo me parte.
Qual parte
me é metade
Qual noite
já me é tarde"

Fred Roberty

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Expediente

"Não amo mais de segunda à sexta-feira
das 8 às 18 horas"

Marlene dos Santos

domingo, 19 de junho de 2011

José Paulo Paes

O aluno
São meus todos os versos já cantados:
A flor, a rua, as músicas da infância,
O líquido momento e os azulados
Horizontes perdidos na distância.
Intacto me revejo nos mil lados
De um só poema. Nas lâminas da estância
Circulam as memórias e a substância
De palavras, de gestos isolados.
São meus também, os líricos sapatos
De Rimbaud, e no fundo dos meus atos
Canta a doçura triste de Bandeira.
Drummond me empresta sempre o seu bigode,
Com Neruda, meu pobre verso explode
E as borboletas dançam na algibeira.

(in O Aluno, 1947, seu primeiro livro)


Madrigal
Meu amor é simples, Dora,
Como a água e o pão.
Como o céu refletido
Nas pupilas de um cão.

(in Cúmplices, 1951)

Dos Deslumbramentos

"Movia-se através das pessoas como um elefante inválido, com um interesse infantil pelo mecanismo interno de cada coisa, pois o mundo parecia, para ele, um imenso brinquedo de corda com o qual se inventava a vida" (12 Contos Peregrinos) G. G. Márquez, sobre Pablo Neruda

"Precisamos ver o mundo de tal modo que nele se combine uma idéia de deslumbramento com uma idéia de acolhimento. Precisamos nos deslumbrar com este mundo, sem nunca nos sentir meramente confortáveis" Chesterton

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Aluga-se

"Eu tinha acabado de ser apresentado a ela quando cometi a impertinência feliz de perguntar como havia feito para implantar-se de tal modo naquele mundo tão distante e diferente de seus penhascos de ventos do Quindío, e ela me respondeu de chofre:
- Eu me alugo para sonhar."

G. G. Márquez
TODAS AS COISAS
DO MUNDO NÃO
CABEM NUMA
IDEIA.MAS TU-
DO CABE NUMA
PALAVRA,NESTA
PALAVRA TUDO.

Arnaldo Antunes

terça-feira, 14 de junho de 2011

Retrato


Ficou tanto tempo admirando seus antepassados nas fotografias da família que quando se olhou no espelho viu que seu rosto havia envelhecido 60 anos, e descobriu que da noite para o dia havia perdido sua infância para viver das lembranças de outros.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

circuitos

[...]Como uma gangorra , duas extremidades, dois pesos desiguais, tentando encontrar um ponto de equilíbrio.
Dilata, comprime, sístole, diástole, o líquido passa primeiro pela veia cava superior, penetra no átrio direito, interrompido pela valva atrioventricular direita, que ao abrir permite a entrada do mesmo a segunda câmara escura do circuito interno do coração, denominando-se: ventrículo direito. [...]

Do teatro e dos sonhos

- Você não apareceu! Por que você não apareceu?
- Não apareci? Onde?
- No meu sonho, esta noite. Você não veio então eu tive que seguir sozinha, e no final acabei por esquecer de você, e quando descobri que tinha te esquecido me assustei, e me assustei tanto que acabei acordando.
- Então,sinto muito.
- Eu não quero suas desculpas, quero explicações...por que você não veio?
- Não sei bem ao certo, acho que era porque eu estava te esperando no meu sonho, onde você também não apareceu, mas eu fiquei esperando assim mesmo, e esperei por tanto tempo que não vi o outono passar. Não sentia mais frio nem calor, nem nada, parecia-me a um fantasma, sentado numa cadeira de balanço, uma estátua. E eu continuei dormindo, porque eu tinha que te esperar, entende?
- E por que você não foi atrás de mim para me parar?
- Eu não podia, eu não...
- Não importa, tudo bem, você sabe.
- Eu sei.
- Foi só um sonho.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Sobre a escrita

Esta palavra que escrevo é traço acostumado, exagero. Escrevendo é daonde enxergo maior as coisas. Onde pingo de chuva não é mais pingo de chuva. É cristal líquido, é oceano.
Escrever é acreditar estar vivo dentro do papel. É ser vítima da própria invenção. E saber que quando não são lidos
                                            os personagens dormem
                                                                               dentro dos livros.

domingo, 5 de junho de 2011

Gabriel García Márquez

"Não era febre" , insistiu, recobrando a compostura. "Além disso, no dia em que me sentir mal não me entrego às mãos de ninguém. Eu mesmo me jogo no lixo!"

(Ninguém escreve ao coronel)

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Do olhar místico

Ainda descomposta pela modorra causada pela insônia do dia anterior, ela aguardava pela sentença que seria anunciada agora por uma cigana que a lia em uma borra de café:
"Nada mal, nada mal...", ela disse:
- Finalmente você vai encontrar algo que sempre procurou mas que nunca soube o que era.
Com seu gênio um tanto inconformado e irritadiço ela respondeu:
-E a senhora pode me dizer como é que eu procurei por toda a minha vida algo de que nem sei?
Ela então sorriu largamente:
- É disso mesmo que eu estou falando!
Anos atrás tinha ouvido esta mesma prescrição de um velho curandeiro que cuidava da febre das moças e das más aparições:
"Não acredito em bulhufas!", exclamou sem piedade.
"Você pode não acreditar", ele disse, " mas é melhor prevenir" e assim lhe entregou um colar feito de cascas de sementes colhidas da serrapilheira em uma noite de lua cheia  que tirou do próprio pescoço. 
E o perfume da madeira foi se espalhando pela sua pele, adentrando por sua nuca até visitar seus fios de cabelo, castanhos , cor da terra, como eram também as sementes.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

O coronel perde a guerra

O coronel agora estava deitado em sua cama, inválido de guerra, pois haviam lhe amputado a perna direita até a altura da canela. Mas o coronel ainda sentia as dores das queimaduras da antiga perna e desejava arduamente coçar a perna fantasma.
-Dê-me a agulha de crochê!, ele disse.
-Não adiantaria nada, se fosse para você coçar sua perna deveria tê-la feito no passado, agora, ela já não existe mais.
-Bobagens! Eu ainda a sinto. Sinto tanto que poderia dar um chute nas suas canelas se conseguisse me levantar daqui!
- Tome a sopa coronel, e deixe de falar asneiras.
-"Espere!", disse ele em um tom de de agonia e desespero com duas lágrimas instaladas no cantos dos olhos, "O que fizeram com Ela?", a mulher suspirou:
- Pensaram em colocá-la em um vidro com alcool como se fosse um troféu de guerra para o inimigo, mas acabaram atirando-a aos cães da rua, que é como se desse no mesmo.
O coronel então voltou a se recostar no travesseiro de algodão, e enviou a boca uma colherada de sopa  nitidamente intragável.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Resposta a Adélia Prado

"O amor quer abraçar e não pode.
A multidão em volta,

com seus olhos cediços,

põe caco de vidro no muro

para o amor desistir.

O amor usa o correio,

o correio trapaceia,

a carta não chega,

o amor fica sem saber se é ou não é.

O amor pega o cavalo,

desembarca do trem,

chega na porta cansado

de tanto caminhar a pé.

Fala a palavra açucena,

pede água, bebe café,

dorme na sua presença,

chupa bala de hortelã.

Tudo manha, truque, engenho:

é descuidar, o amor te pega,

te come, te molha todo.

Mas água o amor não é." Adélia Prado

Com certeza não era o que tinha imaginado porque sempre imaginou o amor pintado de sangue, esticado de vermelho.
Talvez não fosse assim, simplesmente, e sua farsa teria se tornado realidade.
E era sim água, não sangue.

A um amigo...

Ele partiu de madrugada, quando todos os outros da casa já estavam dormindo. Silenciosamente deu adeus a cada um deles, apenas sussurando uma de suas antigas piadas em seus ouvidos. E a casa inteira caiu na gargalhada, por volta da meia-noite.

sábado, 28 de maio de 2011

Poetas de rua

"E sempre o olho certo tem o olhar pro lado errado"

Fred Roberty

Poetas de rua

Ela é uma curva para outro mundo
Um lábio para outro mundo
Eu sempre quis ir.
Fui por uma rua outra, teve um dia
Foi dar numa casinha atrás do outro mundo
Ela estava sentada na porta
A minha espera com um lábio
Que vai dar no outro mundo
Meu deus será que eu tenho mesmo que ir
                                                                 pro outro mundo
Ele disse: Vai meu filho, vai pro outro mundo
Lá ela está, a sua espera com uma curva que
vai dar
no outro mundo

Fred Roberty

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Sobre o Futuro

"No futuro eu estarei aberto para o futuro"
Ney Matogrosso

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Carta para mim (acordes de sangue)

Você vai fingir que é leve.
Vai fingir que desconhece o amor.
Que nem nunca ouviu coisa parecida.
Você vai dobrar sua raiva e  esticar a calma sobre a mesa,
sobre a cama,
a mesma que um dia guardou teus sonhos, teus segredos.
Você vai encobrir tudo com um veludo negro, para não esbarrar nem cair sobre os teus pertences.
No final da tarde você vai chegar em casa e desabar sobre o veludo,
como é de costume, como você faz todas as tardes.
Mas na manhã seguinte, de cara limpa, você trará o esboço de um sorriso. 
E vai dançar a música que escolheram para tí.
E vai dizer que é dádiva.
Vai dizer que é leve,
Que é sem dor.

sábado, 21 de maio de 2011

Os rios

                                São os barcos que dão o sentido aos rios.
Figura: Miró

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Grande Sertão Veredas - Guimarães Rosa


-Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. [...] O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente - depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucaia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde um criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes.Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá [...]. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda parte.

Figura: Poty

O jogo da amarelinha - Capítulo 68

"No mesmo instante em que ele lhe amalava o noema, ela lhe dava com o clêmiso e ambos caíam em hidromurias, em abanios selvagens, em sústalos exasperantes. De cada vez que procurava relamar as incopelusas, ele emaranhava-se num grimado queixoso e tinha de envulsionar-se de cara para o nóvalo, sentindo como se, pouco a pouco, as arnilhas se espechunassem, se fossem apeltronando, reduplimindo, até ficar estendido como o trimalciato de ergomanina no qual se tivesse deixado cair umas filulas de cariacôncia. E, apesar disso, aquilo era apenas o princípio, pois em dado momento, ele tordulava-se os hurgálios, consentindo que ele aproximasse suavemente os seus orfelunios. Logo que se entreplumavam, algo como um ulucórdio os encrestoriava, os extrajustava e paramovia, dando-se, de repente, o clinón, a esterfurosa convulcante das mátricas, a jadeolante embocapluvia do órgumio, os esprêmios do merpasmo numa sobremítica agopausa. Evohé! Evohé! Volposados na crista do murélio, sentiam-se balparamar, perlinos e marulos. Tremia o troque, as marioplumas era vencidas, e tudo se revolvirava num profundo pínice, em niolamas argutendidas gasas, em carínias quase cruéis que os ordopenavam até o limíte das gunfias".

Júlio Cortázar

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Cecília



Cecília fora abandonada no altar. Suas mãos estavam empregnadas do perfume das rosas recém cortadas naquela manhã de casamento. Eram meados de Março e o outono dava os primeiros indícios de sua chegada. Naquele tempo haviam incêndios quase todos os dias nas casas, devido aos descuidos das moças enamoradas que esqueciam as panelas no fogão.  Depois do chá da tarde, as moças iam caminhando até a Rua dos Suspiros e ficavam encostadas nas paredes das casas, suspirando e esperando serem convidadas para passear acompanhadas pelas ruas de Sacramento. 
Foram necessários 4.872 suspiros até que Guilherme tomasse coragem para pedir que Cecília saísse com ele. E fora necessária uma garrafa e meia de bebida para que ele a pedisse em casamento. E ela, até meio contrariada, aceitou. Cecília era apaixonada por Guilherme, mas o modo como fizera o pedido a fez pensar duas vezes. Mas sabia que eram tempos difíceis para o amor, e ao deitar na sua cama a noite se deparou com a foto dele em sua cabeceira, e então se viu plena de lembranças, esquecendo, pelo menos momentaneamente, dos infortúnios do amor. E por isso decidiu aceitar o pedido, respondendo na manhã seguinte.
Mas ele a havia abandonado no altar.
A ela não teria ocorrido que ele talvez pudesse ter sido vítima de uma emboscada que nem era para ele, e que naquela época, as notícias demoravam a chegar. Na manhã do dia de seu casamento Guilherme havia acordado tarde e acabou por derramar café no seu paletó. Decidiu então, pegar o paletó do irmão que estava esticado na cadeira da sala, o qual tinha deixado para arejar depois da noite de farra. Seu irmão havia se envolvido com política e já era considerado ameaça pelo governo. Sua morte havia sido programada para o dia anterior, mas fora adiada por conta de um mal estar sofrido pelo assassino enquanto o perseguia. No caminho para a igreja Gulherme fora confundido com o irmão, por conta de seu paletó, levando nada menos que 5 tiros que lhe abriram o peito. Cecília nada sabía.

No momento, o que lhe restava era apenas o perfume das rosas recém cortadas empregnado em suas mãos.

Figura: Chagall

quarta-feira, 18 de maio de 2011

terça-feira, 17 de maio de 2011

Persona

"Mas veja, a a realidade não coopera. Seu esconderijo não é a prova d'água.
A vida entra em tudo"
Ingmar Bergman

Lagartas-de-fogo

A mãe havia sido bem clara dizendo que não queria mais ver o menino brincando com fogo. Mas não havia dito nada sobre as lagartas-de-fogo. Gostava de brincar em um parquinho abandonado próximo a escola, lá ele encontrava pequenos insetos, lagartas que deixavam um rastro de fios finíssimos por onde passavam. Elas eram pequenas, quase do tamanho de seus dedos de menino. Haviam outras lagartas por ali, umas com cabeça preta , parecida a um grão, e o corpo revestido de um veludo verde, vermelho e preto xadrez, o menino dizia que aquela era a rainha das lagartas. As meninas da escola corriam assustadas, diziam que o menino estava brincando com fogo: "Claro que não", dizia ele, "Elas não fazem nada", e pegava-as na palma da mão demonstrando sua sabedoria infantil acerca da natureza.
Um dia o menino estava deitado no parque contando o número de folhas que havia numa árvore, e de repente viu uma lagarta diferente. Ela era de um verde vivo, quase fluorescente, com pêlos que soltavam de seu corpo como ramos de um pequeno arbusto. O menino não hesitou em querer pega-la na mão. Sentiu sua pele queimar quando a encostou, soltou a lagarta e levou a mão aos lábios para conter a dor. Mas era tarde. Essa fora a última vez que a viu.

Celia Paul

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Tia Landa

(Outubro, 2010)

Tia Landa não tinha pernas. A causa era a poliomilite, mas aos demais interessados , tia Landa dizia que as tinha perdido no pôquer, ou na guerra, e que por conta disso tinha ganhado duas medalhas: uma para cada perna.
Tia Landa usava pernas postiças feitas de imbuia, mas participava de todas as festas e bailes da cidade, dançando até o dia terminar.
Eram seis irmãs: Alice, Helena, Oliva, Carmita, Cizira e tia Landa.
As sextas-feiras os Rissetti jogavam cartas, Alice era a quem sempre reclamava:
- Vamos Zanoto! Jogue logo essas cartas , antes que eu perca minha paciência!
Alice acabou se casando com Zanoto.
Perguntei se a tia Landa havia se casado também:
-Tia Landa? Como? Ela não poderia cuidar de uma casa.
Ela tinha ainda o braço esquerdo inteiro afetado pela doença, e bordava com uma mão só.

Tia Landa tinha vocação para ser só, e portanto nunca pode se casar, nem mesmo ter um amor para chamá-lo de seu.
Ela conheceu o amor por outros meios, outras formas, outras partes.