"Seu pensamento ia sempre pelos úmidos corredores escuros, sacudindo dos retratos o pó seco coberto de teias de aranha. Inavariavelmente se lembrava do menino. Lá o imaginava , sonâmbulo, debaixo da grama, no pátio, junto a laranjeira , com um punhado de terra molhada dentro da boca. Parecia vê-lo em seu fundo argiloso, cavando para cima com as unhas, com os dentes , fungindo ao frio que lhe mordia as costas; procurando a saída do pátio por esse pequeno túnel onde o meteram com os caracóis. No inverno ouvia-o chorar com seu pequeno pranto, sujo de barro, transpassado pela chuva. Imaginava-o inteiro. Tal como o haviam deixado cinco anos atrás, naquele buraco cheio de água. Não podia pensar que se decompusera. Ao contrário, devia estar belíssimo navegando nessa água espessa, como em uma viagem sem saída. Ou o via vivo, mas assustado, medroso por sentir-se só, enterrado em um pátio sombrio. Ela mesma se opusera a que o deixassem ali, debaixo da laranjeira, tão perto da casa. Tinha medo. Sabia que nas horas em que a perseguisse a vígília ele o adivinharia. Regressaria pelos amplos corredores a pedir-lhe que o acompanhasse , a pedir-lhe que o defendesse desses outros insetos que estavam comendo a raiz de suas violetas. Voltaria para que o deixassem dormir a seu lado como quando era vivo. Ela tinha medo de senti-lo de novo , depois de ter pulado o muro da morte. Tinha medo de roubar essas mãos que o menino traria sempre fechadas para aquecer seu pedacinho de gelo. Ela queria ,depois que o viu convertido em cimento , com a estátua do medo caída sobre o limo, queria que o levassem longe para não o recordar à noite.E, apesar disso, haviam-no deixado ali, onde agora estava impeturbável, desprezível, alimentando seu sangue com o barro das minhocas. E ela tinha que se resignar a vê-lo regressar do seu fundo das trevas. Por que sempre , invariavelmente, quando perdia o sono , punha-se a pensar no menino, que a devia estar chamando, do seu pedaço de terra para que o ajudasse a fugir dessa morte absurda. [...]" - Eva está dentro do seu gato - Gabriel García Márquez
sábado, 19 de novembro de 2011
Olhos de cão azul
"Seu pensamento ia sempre pelos úmidos corredores escuros, sacudindo dos retratos o pó seco coberto de teias de aranha. Inavariavelmente se lembrava do menino. Lá o imaginava , sonâmbulo, debaixo da grama, no pátio, junto a laranjeira , com um punhado de terra molhada dentro da boca. Parecia vê-lo em seu fundo argiloso, cavando para cima com as unhas, com os dentes , fungindo ao frio que lhe mordia as costas; procurando a saída do pátio por esse pequeno túnel onde o meteram com os caracóis. No inverno ouvia-o chorar com seu pequeno pranto, sujo de barro, transpassado pela chuva. Imaginava-o inteiro. Tal como o haviam deixado cinco anos atrás, naquele buraco cheio de água. Não podia pensar que se decompusera. Ao contrário, devia estar belíssimo navegando nessa água espessa, como em uma viagem sem saída. Ou o via vivo, mas assustado, medroso por sentir-se só, enterrado em um pátio sombrio. Ela mesma se opusera a que o deixassem ali, debaixo da laranjeira, tão perto da casa. Tinha medo. Sabia que nas horas em que a perseguisse a vígília ele o adivinharia. Regressaria pelos amplos corredores a pedir-lhe que o acompanhasse , a pedir-lhe que o defendesse desses outros insetos que estavam comendo a raiz de suas violetas. Voltaria para que o deixassem dormir a seu lado como quando era vivo. Ela tinha medo de senti-lo de novo , depois de ter pulado o muro da morte. Tinha medo de roubar essas mãos que o menino traria sempre fechadas para aquecer seu pedacinho de gelo. Ela queria ,depois que o viu convertido em cimento , com a estátua do medo caída sobre o limo, queria que o levassem longe para não o recordar à noite.E, apesar disso, haviam-no deixado ali, onde agora estava impeturbável, desprezível, alimentando seu sangue com o barro das minhocas. E ela tinha que se resignar a vê-lo regressar do seu fundo das trevas. Por que sempre , invariavelmente, quando perdia o sono , punha-se a pensar no menino, que a devia estar chamando, do seu pedaço de terra para que o ajudasse a fugir dessa morte absurda. [...]" - Eva está dentro do seu gato - Gabriel García Márquez