quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O jogo da Amarelinha

" O mero fato de nos interrogarmos sobre a possível eleição já vicia e perturba o elegível. [...] Entre o yin e o yang quantos eões? Do sim ao não, quantos talvez? Tudo é escritura, ou seja, fábula. Mas para que nos serve a verdade que tranquiliza o honesto proprietário? A nossa verdade possível tem de ser invenção, ou seja, escritura, literatura, pintura, escultura, agricultura, piscicultura, todas as turas deste mundo. Os valores, turas, a santidade, uma tura, a sociedade, uma tura, o amor , pura tura, a beleza, turas das turas. Num dos seus livros, Morelli fala do napolitano que passou anos sentado á porta de sua casa , olhando um parafuso no chão. De noite, pegava-o e guardava-o debaixo do colchão.O parafuso foi primeiro uma simples piada, uma gozação, uma irritação comunal, reunião dos vizinhos, sinal de violação dos direitos cívicos, e finalmente um encolher de ombros, a paz, o parafuso foi a paz, ninguém podia passar pela rua sem olhar de soslaio para o parafuso e sentir que ele era a paz. O sujeito morreu de uma síncope, e o parafuso desapareceu assim que os vizinhos chegaram. Um deles o guardou, talvez o olhe em segredo , o estude por todos os lados, voltando a guarda-lo e indo para a fábrica, sentindo algo que não compreende, uma obscura reprovação. Só se acalma quando retira o parafuso do seu esconderijo e o olha, fica olhando até ouvir passos e ser obrigado a escondê-lo rapidamente. Morelli pensava que o parafuso devia ser outra coisa, um deus ou algo assim. Solução demasiadamente fácil. Talvez o erro tenha sido aceitar que esse objeto fosse um parafuso tão somente por ter a forme de um parafuso. Picasso pega um automóvel de brinquedo e o converte no queixo de um cinocéfalo. É bem possível que o napolitano fosse um idiota, mas também pode ter sido o inventor de um mundo. " [...]

Julio Cortazár