Andava dizendo essas coisas, que alma a nenhum lugar pertencia, nenhum compartimento, mala ou gaveta, que se fosse assim teria que cuidar para que esta não lhe saísse pelos olhos, ou por qualquer dos orifícios. E que gostava dessa mania de ser antípoda, disso se orgulhava, sem nem saber do que se orgulhar, não merecia. Certeza? Apelido! Era mais uma brincadeira de dizeres, palavra solta que acompanha o tal pensamento solto. Cabe acrescentar aqui: Não desejava céu nenhum. Preferia muito mais deitar de cócoras sob a chuva de fogo do sétimo círculo do inferno, e de ousadia ainda entortar mais os cornos do diabo, ou fazer-lhe tranças. Comprazia-lhe se enfeitar com absurdos... Tereza não, Tereza era uma santa, não lia maldade nos olhos de ninguém. Seu maior desejo era o mistério, mas não qualquer mistério, acreditava em um mistério claro, do tipo que lhe convida e deixa resquícios. Diferente de Ana, a primeira personagem dessa história, a qual arrombaria todas as portas suspeitas de abrigar em seu interior um mistério, só pelo prazer de vê-lo despido, desprovido de qualquer falsa aparência. Tereza agasalharia suas dúvidas, mas as alimentaria a água e pão (veja bem, ela buscava um mistério claro, e não o mistério puro), e para isso era preciso ordem. O mistério claro tem regras, é minuciosamente planejado, tem começo, meio e fim, não diz mais do que o necessário, e não desdiz nada. Beatriz, a terceira personagem dessa história, tinha um senso de justiça apurado. Continha a mesma liberdade restrita de Tereza, mas seus motivos eram outros. Ana era tal qual seu nome: um palíndromo, queria enxergar as coisas por todos os ângulos possíveis, encontrar seus contrários, viver mil vidas, entender o funcionamento das coisas. O maior desejo de Ana era ser objeto de estudo (e, portanto, vítima) de Tereza e Beatriz. Ao passo que o que Beatriz punia, Tereza perdoava. Tereza não concebia a idéia de que um homem, qualquer que fosse, pudesse se alistar voluntariamente para praticar um tipo de maldade gratuita. Ana fingia ser esse tipo de maldade, pois queria encontrar os furos, os fiapos da trama cuidadosamente costurada por Beatriz. Tereza sofria por Beatriz, sentia que nunca poderia convencê-la de abandonar aquela rigidez que defendia com unhas e dentes (e ela mesma não adivinhava que deveria ,talvez, abandonar a sua). Beatriz detestava o perdão de Tereza, seu despreparo para o amor lhe condenava. Mas assim tinha sido a sua vida inteira, e como poderia ser diferente?
Ana compreendia o dilema de Tereza e Beatriz de querer arranjar a ordem das coisas, mas queria contrariá-las a qualquer custo, às vezes dominada por sua vontade de ser antípoda, mas sempre regida pelo princípio de que nada poderia ser revestido de uma certeza, e que somando todos os pontos de vista poderíamos enxergar uma imagem nítida. Toda a teoria de Ana era ignorada por Tereza. Colocava tudo dentro de seu mistério claro, e ali se resolvia. Para Ana, Tereza era covardia plena. Mas Tereza não tinha culpa de querer enxergar uma boa razão nas coisas, o contrário lhe causaria desespero. O mistério havia lhe deixado uma lista de deveres e obrigações da qual Tereza jamais ousou desobedecer. Ela compreendia que as coisas eram maiores do que pareciam ao primeiro momento, como Ana, mas nunca se sentiu capaz de compreendê-las. E mais, acreditava que algumas delas não seriam compreendidas nunca. Beatriz, se ausentava das discussões de Tereza, havia adquirido seu mesmo hábito de buscar a ordem, e não ousar desobedecê-la, mas Beatriz era terrena. As regras de Beatriz eram incontestáveis, tanto quanto as de Tereza, enquanto Ana, esta, não tinha regra nenhuma.