terça-feira, 29 de março de 2011

M. Quintana

"Laranja! grita o pregoeiro.
Que alto no ar suspensa!
Lua de ouro entre o nevoeiro
Do sono que se esgarçou.
Laranja! grita o pregoeiro.
Laranja que salta e voa.
Laranja que vais rolando
Contra o cristal da manhã!
Mas o cristal da manhã
Fica além dos horizontes...
[...] "

"A insustentável leveza do ser"

"No momento, Tomas está de pé à janela e relembra esse instante. O que se revelava assim, senão o amor?
Mas seria amor? Estava persuadido de que queria morrer ao lado dela, e esse sentimento era claramente exagerado: ele a estava vendo então apenas pela segunda vez! Não seria mais uma reação histérica de um homem que, compreendendo em seu foro íntimo a inaptidão para o amor, começa a representar para si próprio a comédia do amor?[...]
Olhava os muros sujos do pátio e compreendia que não sabia se era histeria ou amor.
E, nessa situação em que um verdadeiro homem saberia agir imediatamente, ele se recriminava por hesitar e assim negar ao instante mais belo de sua vida (está de joelhos à cabeceira da moça, convencido de não poder sobreviver à morte dela) a sua plena significação.
Torturava-se com recriminações, mas terminou por se persuadir de que no fundo era normal que não soubesse o que queria: nunca se pode saber o que se deve querer, pois só se tem uma vida e não se pode nem compará-la com as vidas anteriores nem corrigi-las nas posteriores.
Seria melhor ficar com Tereza ou continuar sozinho?
Não existe meio de verificar qual é a decisão acertada, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que leva a vida a parecer sempre um esboço. No entanto, mesmo esboço não é a palavra certa, pois um esboço é sempre o projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro.
Tomas repete para si mesmo o provérbio alemão: einmal ist keinmal, uma vez não conta, uma vez é nunca. Não poder viver senão uma vida é como não viver nunca."

segunda-feira, 28 de março de 2011

O jogo da Amarelinha cap.81

O próprio do sofista , segundo Aristófanes, é inventar novas razões.
Procuremos inventar novas paixões, ou reproduzir as velhas com a mesma intensidade.
Analiso mais uma vez esta conclusão, de raiz pascaliana:
A verdadeira crença está entre a superstição e a libertinagem.

José Lezama Lima, Tratados en La Habana

Capítulo 1

Andava dizendo essas coisas, que alma a nenhum lugar pertencia, nenhum compartimento, mala ou gaveta, que se fosse assim teria que cuidar para que esta não lhe saísse pelos olhos, ou por qualquer dos orifícios. E que gostava dessa mania de ser antípoda, disso se orgulhava, sem nem saber do que se orgulhar, não merecia. Certeza? Apelido! Era mais uma brincadeira de dizeres, palavra solta que acompanha o tal pensamento solto. Cabe acrescentar aqui: Não desejava céu nenhum. Preferia muito mais deitar de cócoras sob a chuva de fogo do sétimo círculo do inferno, e de ousadia ainda entortar mais os cornos do diabo, ou fazer-lhe tranças. Comprazia-lhe se enfeitar com absurdos... Tereza não, Tereza era uma santa, não lia maldade nos olhos de ninguém. Seu maior desejo era o mistério, mas não qualquer mistério, acreditava em um mistério claro, do tipo que lhe convida e deixa resquícios. Diferente de Ana, a primeira personagem dessa história, a qual arrombaria todas as portas suspeitas de abrigar em seu interior um mistério, só pelo prazer de vê-lo despido, desprovido de qualquer falsa aparência. Tereza agasalharia suas dúvidas, mas as alimentaria a água e pão (veja bem, ela buscava um mistério claro, e não o mistério puro), e para isso era preciso ordem. O mistério claro tem regras, é minuciosamente planejado, tem começo, meio e fim, não diz mais do que o necessário, e não desdiz nada. Beatriz, a terceira personagem dessa história, tinha um senso de justiça apurado. Continha a mesma liberdade restrita de Tereza, mas seus motivos eram outros. Ana era tal qual seu nome: um palíndromo, queria enxergar as coisas  por todos os ângulos possíveis, encontrar seus contrários, viver mil vidas, entender o funcionamento das coisas. O maior desejo de Ana era ser objeto de estudo (e, portanto, vítima) de Tereza e Beatriz. Ao passo que o que Beatriz punia, Tereza perdoava. Tereza não concebia a idéia de que um homem, qualquer que fosse, pudesse se alistar voluntariamente para praticar um tipo de maldade gratuita. Ana fingia ser esse tipo de maldade, pois queria encontrar os furos, os fiapos da trama cuidadosamente costurada por Beatriz. Tereza sofria por Beatriz, sentia que nunca poderia convencê-la de abandonar aquela rigidez que defendia com unhas e dentes (e ela mesma não adivinhava que deveria ,talvez, abandonar a sua). Beatriz detestava o perdão de Tereza, seu despreparo para o amor lhe condenava. Mas assim tinha sido a sua vida inteira, e como poderia ser diferente?
Ana compreendia o dilema de Tereza e Beatriz de querer arranjar a ordem das coisas, mas queria contrariá-las a qualquer custo, às vezes dominada por sua vontade de ser antípoda, mas sempre regida pelo princípio de que nada poderia ser revestido de uma certeza, e que somando todos os pontos de vista poderíamos enxergar uma imagem nítida. Toda a teoria de Ana era ignorada por Tereza. Colocava tudo dentro de seu mistério claro, e ali se resolvia. Para Ana, Tereza era covardia plena. Mas Tereza não tinha culpa de querer enxergar uma boa razão nas coisas, o contrário lhe causaria desespero. O mistério havia lhe deixado uma lista de deveres e  obrigações da qual Tereza jamais ousou desobedecer. Ela compreendia que as coisas eram maiores do que pareciam ao primeiro momento, como Ana, mas nunca se sentiu capaz de compreendê-las. E mais, acreditava que algumas delas não seriam compreendidas nunca. Beatriz, se ausentava das discussões de Tereza, havia adquirido seu mesmo hábito de buscar a ordem, e não ousar desobedecê-la, mas Beatriz era terrena.  As regras de Beatriz eram incontestáveis, tanto quanto as de Tereza, enquanto Ana, esta, não tinha regra nenhuma.  

domingo, 27 de março de 2011

Á um desconhecido - Parte 4


Vi Evídio transformado em pássaro. Era, talvez, uma terça-feira, mas com certeza era verão. Aonde antes Evídio permanecia sentado em sua cadeira sem balanço (que nem vento não alcançava), haviam pousado dez pássaros cor-da-terra, e logo soube: era mais um de seus disfarces.
A casa permanecia a mesma, seu cenário desigual, o único que tinha habitado; Essa casa era pequena, tão pequena que a gente se sentia grande nela, e até ficava envaidecido.
Era uma casa banguela, só habitada por coisas maiores...
Feito o vazio, feito o silêncio.
A palavra derramada sobre o papel, é delírio impresso.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Não soubemos ser de outra maneira, não importa, ainda é belo nosso mais antigo começo

quarta-feira, 23 de março de 2011

Fragmentos de Leminski:

“    Esta página, por exemplo,
Não nasceu para ser lida.
     Nasceu para ser pálida,
Um mero plágio da Ilíada”

“Mas falo. E, ao falar, provoco
Nuvens de equívocos
   (ou enxames de monólogos?)”

“ Um grito na parede rede rede
Volta verde verde verde”

“    Tudo em mim
Anda a mil
     Tudo assim
Tudo por um fio”

“    Tem horas que é caco de vidro,
Meses que é feito um grito,
     Tem horas que eu nem duvido,
Tem dias que eu acredito”

“   Pra que me serve um negócio
Que não cessa de bater?
    Mas parece um relógio
Que acaba de enlouquecer.
    Pra que é que eu quero quem chora,
Se estou tão bem assim,
    E o vazio que vai lá fora,
Cai macio dentro de mim?”

" o amor, esse sufoco,
agora há pouco era muito
agora, apenas um sopro"

“    A nós, gente, só foi dada
Essa maldita capacidade,
     De transformar amor em nada”


 “   Nenhuma página
Jamais foi limpa
    Mesmo a mais Saara,
Ártica, significa”

“Ambígua volta,
Em torno da ambígua ida,
Quantas ambigüidades
Se pode cometer na vida?”

“Parece que foi ontem
Tudo parecia alguma coisa[...]
Parecer era tudo
Que as coisas sabiam fazer”

“Voar com asa ferida?[...]
A asa arde. Voar, isso não dói.”

“quem sabe ainda não acabei de escrever”

 Só existe um segredo.
Tudo está na cara.”

terça-feira, 22 de março de 2011

E com que direito haveríamos de botar tudo a perder, se não fosse isso mais que uma mania tonta de desencontros? Com que direito entraríamos num ir e vir sem cessar, cada um com seu próprio coração entalado na garganta, e depois ensimesmados, e depois rolando solta nas profundezas do espaço?
Pois se éramos todos tão confusos, como haveríamos de encontrarmos sós uma solução?
Poema é isso: é mais do que se esticar para tocar nas folhas, é esbarrar nas raízes.

domingo, 20 de março de 2011

E é tão bonito ver o sol dobrar a esquina do amanhã

sábado, 19 de março de 2011

H. Kolody

"Sempre cheguei tarde
 ou cedo demais.
 Não vi a felicidade acontecer [...]"

quinta-feira, 17 de março de 2011

"Tudo que é sólido se desmancha no ar"



A existência da norma provoca o primeiro impulso para o desvio da norma, para a abolição da norma, assim como a evidência de uma certeza é entregue aos deleites da dúvida e tudo se encerra em uma resolução dialética de progressão infinita. Mais do que um magnetismo que pretende os avessos, haveria um propósito nessa tendência paradoxal, que se não é simetricamente antagonista apresenta, ao menos, conflitos de numerosas peculiaridades materializadas em algumas curiosas ocasiões?
Como aquele menino que começou a roubar para levar uma vida mais honesta, como aquela moça que decidiu virar prostituta porque aquela fora a única forma com que ela tinha conhecido o amor, como aquele homem que de tão sábio admitiu que não compreendia nada, ou como naquele poema do Quintana que falava de um homem que era tão santo, mas tão santo, que se comprometeu a pecar pois julgou não merecer o céu.

quarta-feira, 16 de março de 2011

se você nunca viesse a me responder eu haveria de te esperar para sempre

Sobre a realidade e o sonho

Dizem que os cães sonham perseguir gatos, e que os gatos sonham serem perseguidos pelos cães, há quem diga que os sonhos são só isso: busca e fuga, e que tudo dependa de um ponto de vista, da natureza do sujeito. O fato é que jamais alguém sonhou algo que não pudesse descrever, classificar e separar em cores, forma, textura ou na ausência delas, e assim sendo, podemos afirmar que os sonhos sempre partem do real, ou do que podemos perceber através dos nossos sentidos, ainda que no sonho se formem novas combinações deste real, e que seu resultado seja ilógico, tecnicamente improvável ou inconcebível. Mas o que se pode concluir com toda certeza é que a realidade e o sonho se costuram, se misturam formando um algo indivisível em uma relação interespecífica harmônica e obrigatória de constante reciprocidade:
Tudo que existe foi sonhado e tudo que é sonhado existe. 

terça-feira, 15 de março de 2011

Quando a realidade encontra o hipotético, bem como numa profecia, o universo inteiro se curva, se prostra de indignação, de espanto, admiração e misericórdia. O destino dos homens ornamentado nas estrelas, na posição dos astros, cravado na palma da mão nos enche de medo, nos petrifica. Tal superstição é limitar o homem, é colocar-lhe amarras, é torná-lo ocioso á espera de seu destino.
Talvez maior e mais belo desafio seja ainda afrontar o mundo com nossas próprias decisões e ,se for preciso, arquitetar nossas coincidências.

domingo, 13 de março de 2011

Chico B.

Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu...

sábado, 12 de março de 2011

A palavra e a lei

Eu nunca disse que a minha palavra era lei, nunca pretendi tal ambição, aliais, preferiria ser desprezada a ser idealizada, pois assim me tornaria mais real, orgânica. Repito, não deveria idealizar ninguém, é algo de extrema deselegância me tirar o direito irrevogável e justo de errar e de contar histórias. Esquece que aqui não tenho compromisso algum com a verdade, ademais, não deveria acreditar em todas as coisas que eu digo, como naquela anedota do homem cego e seus dois cães negros de três pernas. Na escrita escolho todos os caminhos, até os mais esquálidos e impróprios, se não fosse assim nunca teria terminado de ler o "Memória de minhas Putas Tristes" do Gabriel García Márquez, provavelmente nem ele teria terminado de escrevê-lo, mas somos somente filhos bastardos do poema autopsicografado de Pessoa.
Brindo hoje à sorte de nossa completa falta de brios de dizer mais do que aguenta a boca, e tenho dito.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Como eu queria poder arrancar todos os poréns dos nossos arredores, todas as molduras das telas de nossas paredes, retirar o pó em volta da cortina de teus olhos enquanto estivesse dormindo, arrombar as portas de teu denso labirinto, e por fim , revestir de ouro as pedras soltas do teu caminho.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Eu gostaria que fossemos assim, que simplesmente perdessemos a noção da hora, e até desconstruíssemos a noção de tempo, que não houvesse previsão, expectativa, ansiedade ou mesmo saudade, que fossemos só inspiração, que vivessemos eternamente o instante do agora, numa combinação inusitada de ocasião e vontade, e que voltasse a morar em meus lábios um tipo de riso despreocupado perdido na infância, que inventássemos uma porção de palavras novas, indizíveis, completamente impronunciáveis e que por meio delas recriássemos o mundo.

domingo, 6 de março de 2011

Waking Life

"A viajem não precisa de explicações, só ocupantes. Não se preocupe em desenhar fora da linha, ou colorir fora delas, está me entendendo? A cor sai fora da página"

sábado, 5 de março de 2011

O outono permanece cap.1

O outono permanece, mesmo durante as outras estações.
Ele se manifesta por dentre as folhas secas da calçada, e no vento que curvou seu rumo repentinamente, como nas chuvas de verão.
Sim, vento, vento este que despenteia meus cabelos, e eriça meus pêlos numa espécie de anti-gravidade. O tipo de vento que bate no rosto e nos diz quem a gente é. Como as botucas. As botucas em minha perna me lembram de que eu existo, são a prova de que existo, e também, de que existem botucas, que elas de mim necessitam e que assim fazemos parte de um todo, ou pelo menos, de um algo maior. Mas não existem botucas no outono. No outono, as botucas dormem, e sonham com as pernas de outros, talvez, com as minhas pernas, quem sabe... Mas lhes falava do outono, pois bem, o outono tem íris castanha, pele cinzenta e dentes amarelo ocre. Seus dias e noites tem a mesma duração, e são tão longos e tão mortais quanto os demais dias do ano... Mas não se enganem, o outono é belo. Belo como os olhos de um cão, como a camisa surrada de um mendigo, como um botão que se desprendeu dessa camisa, como um fio de cabelo branco ou como as páginas amareladas de um livro antigo. O belo é o autêntico. É um chiclete grudado embaixo de uma carteira de escola.

Reflexões Black Swan

O filme Cisne Negro pode ser alvo de inúmeras análises, possui múltiplas facetas, uma complexidade e uma intensidade ímpar, resultando em uma obra completamente visceral e estonteante.
Segundo Aristóteles “A arte imita a alma humana”, no entanto, no filme existe um balanço que nos faz questionar, se é a arte imita a vida ou a vida imita a arte. Nina dá prioridade a perfeição técnica, muito distante da idéia de perfeição em Aristóteles , e também da psicologia, onde o homem é formado de luz e sombra. Por definição, perfeição é ser inteiro, completo, assim, o filme tem como foco a metamorfose, a busca da perfeição, tanto no sentido da arte como na essência humana.
Essa busca pela perfeição em Nina se dá em etapas através do autoconhecimento. Primeiro há as projeções: A mãe, Erica Sayers, se projeta na filha, no seu sucesso, o almeja como se fosse o próprio, ficando obcecada pela filha e passando horas a fio pintando quadros com sua figura. Nina, por sua vez se projeta primeiro em Beth Macintyre, uma famosa bailarina que entra em decadência. Quando vê Beth no hospital ela quebra sua projeção, ao mesmo tempo que projeta seu lado obscuro em Lily, uma nova bailarina do grupo, por quem se sente incomodada e desconfortável. Lily representa tudo o que Nina reprime em si mesma, espontaneidade, sedução, malícia, emoção etc. Mas, ao mesmo tempo que Nina despreza toda essa alteridade em Lily, ela a almeja (aí há também um jogo do consciente e do inconsciente).
Os espelhos mostram algo que está além do que Nina espera ver, um lado seu desconhecido, o qual coincide com o lado obscuro projetado em Lily, e através destes começa parte do seu reconhecimento. Thomas Leroy, o diretor também procura ajudar Nina nessa transição, ele reconhece a projeção causada em Lily “A única pessoa que está em seu caminho é você mesma”, mas Nina só se dá conta disso quando se vê atingida por sua própria sombra, ao final do filme. A automutilação é conseqüência da metamorfose, está sempre presente, assim, podemos supor que é preciso que exista destruição para que algo novo e perfeito se construa.
Na última cena Nina mergulha em seu estado sublime, atingindo a perfeição, e seus olhos estão abertos, não porque foi vazia a entrega, mas porque ela sabe, ela está consciente, ela literalmente vê: era perfeito.

Sobre Ratos e homens

...ele não sabia que ao tentar dar dignidade a ela, tiraria toda a dignidade dela e perderia a sua também. Por isso desistiu do amor. Seu maior erro foi acreditar em uma liberdade que ele mesmo tinha inventado. Uma liberdade que não pretendia libertar nada. 
(e até ali ele tinha sido inocente, mas...)
Ela então, se manteve inerte, não havia, no entanto, como ele julgou adivinhar, medo algum em seu estado de pedra: “Não há resposta certa”, ele disse, mas havia, e era dela, seu incomodo silêncio, sua resistência. Pois cabe aos ratos a bravura faltante nos homens.
P.S. Reflexão a cerca do filme "A lista de Schindler"