"Aí pois, de
repente, vi um menino, encostado numa árvore pitando cigarro. Menino
mocinho, pouco menos do que eu, ou devia de regular minha idade. Ali
estava, com um chapéu-de-couro, de sujigola baixada, e se ria para mim.
Não se mexeu. Antes fui eu que vim para perto dele. Então ele foi me
dizendo, com voz muito natural, que aquele comprador era o tio dele, e
que moravam num lugar chamado Os-Porcos, meio-mundo diverso, onde não
tinha nascido. Aquilo ia dizendo, e era um menino bonito, claro, com a
testa alta e os olhos aos-grandes, verdes. Muito tempo mais tarde foi
que eu soube que esse lugarim Os-Porcos existe de se ver, menos longe
daqui, nos gerais de Lassance .
–
“Lá é bom? – perguntei. – “Demais...” – ele me respondeu; e continuou
explicando: – “Meu tio planta de tudo. Mas arroz este ano não plantou,
porque enviuvou de morte de minha tia...” Assim parecesse que tinha
vergonha, de estarem comprando aquele arroz, o senhor veja.
Mas eu olhava esse menino, com um prazer de
companhia, como nunca por ninguém eu não tinha sentido. Achava que ele
era muito diferente, gostei daquelas finas feições, a voz mesma, muito
leve, muito aprazível. Porque ele falava sem mudança, nem intenção, sem
sobejo de esforço, fazia de conversar uma conversinha adulta e antiga.
Fui recebendo em mim um desejo de que ele não fosse mais embora, mas
ficasse, sobre as horas, e assim como estava sendo, sem parolagem miúda,
sem brincadeira – só meu companheiro amigo desconhecido. Escondido
enrolei minha sacola, aí tanto, mesmo em fé de promessa, tive vergonha
de estar esmolando. Mas ele apreciava o trabalho dos homens, chamando
para eles meu olhar, com um jeito de siso. Senti, modo meu de menino,
que ele também se simpatizava a já comigo.
Ao ver que tinha dinheiro de seu, comprou um
quarto de queijo, e um pedaço de rapadura. Disse que ia passear em
canoa. Não pediu licença ao tio dele. Me perguntou se eu vinha. Tudo
fazia com um realce de simplicidade, tanto desmentindo pressa, que a
gente só podia responder que sim. Ele me deu a mão, para me ajudar a
descer o barranco.
As canoas eram algumas, elas todas compridas,
como as de hoje, escavacadas cada qual em tronco de pau de árvore. Uma
estava ocupada, apipada passando as sacas de arroz, e nós escolhemos a
melhor das outras, quase sem água nem lama nenhuma no fundo. Sentei lá
dentro, de pinto em ovo. Ele se sentou em minha frente, estávamos
virados um para o outro. Notei que a canoa se equilibrava mal,
balançando no estado do rio. O menino tinha me dado a mão para descer o
barranco. Era uma mão bonita, macia e quente, agora eu estava
vergonhoso, perturbado. O vacilo da canoa me dava um aumentado receio.
Olhei: aqueles esmerados esmartes olhos, botados verdes, de folhudas
pestanas, luziam um efeito de calma, que até me repassasse. Eu não sabia
nadar. O remador, um menino também, da laia da gente, foi remando.
Bom aquilo não era, tão pouca firmeza. Resolvi ter brio. Só era bom por
estar perto do menino. Nem em minha mãe eu não pensava. Eu estava indo a
meu esmo.
Saiba o senhor, o de-Janeiro é de águas claras. E
é rio cheio de bichos cágados. Se olhava a lado, se via um vivente
desses – em cima de pedra, quentando sol, ou nadando descoberto, exato.
Foi o menino quem me mostrou. E chamou minha atenção para o mato da
beira, em pé, paredão, feito à régua regulado. – “As flores...” – ele
prezou. No alto, eram muitas flores, subitamente vermelhas, de
olho-de-boi e de outras trepadeiras, e as roxas, do mucumã, que é um
feijão bravo; porque se estava no mês de maio, digo – tempo de comprar
arroz, quem não pôde plantar. Um pássaro cantou. Nhambú? E periquitos,
bandos, passavam voando por cima de nós. Não me esqueci de nada, o
senhor vê. Aquele menino, como eu ia poder deslembrar? Um papagaio
vermelho: - “Arara for” – ele me disse. E – quê-quê-quê? – o
araçari perguntava, Ele, o menino, era dessemelhante, já disse, não dava
minúcia de pessoa outra nenhuma. Comparável um suave de ser, mas
asseado e forte – assim se fosse um cheiro bom sem cheiro nenhum
sensível – o senhor represente. As roupas mesmas não tinham nódoa nem
amarrotado nenhum, não fuxicavam. A bem dizer, ele pouco falasse. Se via
que estava apreciando o ar do tempo, calado e sabido, e tudo nele era
segurança em si. Eu queria que ele gostasse de mim.
Mas, com pouco, chegávamos no do-Chico. O senhor
surja: é de repentemente, aquela terrível água de largura: imensidade.
Medo maior que se tem, é de vir canoando num ribeirãozinho, e dar, sem
espera, no corpo dum rio grande. Até pelo mudar. A feiúra com que o São
Francisco puxa, se moendo todo barrento vermelho, recebe para si o
de-Janeiro, quase só um rego verde só. – “Daqui vamos voltar?” – eu
pedi, ansiado. O menino não me olhou – porque já tinha estado me
olhando, como estava. – “Para que?” – ele simples perguntou, em descanso
de paz. O canoeiro, que remava, em pé, foi quem se riu, decerto de mim.
Aí o menino mesmo se sorriu, sem malícia e sem bondade. Não piscava os
olhos. O canoeiro, sem seguir resolução, varejava ali, na barra, entre
duas águas, menos fundas, brincando de rodar mansinho, com a canoa
passeada. Depois, foi entrando no do-Chico, na beirada, para o rumo de
acima. Eu me apeguei de olhar o mato da margem. Beiras sem praia,
tristes, tudo parecendo meio podre, a deixa, lameada ainda da cheia
derradeira, o senhor sabe: quando o do-Chico sobe os seis ou os onze
metros. E se deu que o remador encostou quase a canoa nas canaranas, e
se curvou, queria quebrar um galho de maracujá-do-mato. Com o mau jeito,
a canoa desconversou, o menino também tinha se levantado. Eu disse um
grito – “Tem nada não...” – ele falou, até meigo muito. – “Mas, então,
vocês fiquem sentados...” – eu me queixei. Ele se sentou. Mas, sério
naquela sua formosa simpatia, deu ordem ao canoeiro, com uma palavra só,
firme mas sem vexame: – Atravessa!” O canoeiro obedeceu.
Tive medo. Sabe? Tudo foi isso: tive medo!
Enxerguei os confins do rio, do outro lado. Longe, longe, com que prazo
se ir até lá? Medo e vergonha. A aguagem bruta, traiçoeira – o rio é
cheio de baques, modos moles, de esfrio, e uns sussurros de desamparo.
Apertei os dedos no pau da canoa. Não me lembrei do Caboclo-d’Água, não
me lembrei do perigo que á a “onça-d’água”, se diz – a ariranha – essas
desmergulham, em bando, e bécam a gente: rodeando e então fazendo a
canoa virar, de estudo. Não pensei nada. Eu tinha o medo imediato. E
tanta claridade do dia. O arrojo do rio, e só aquele estrape, e o risco
extenso d’água, de parte a parte. Alto rio, fechei os olhos. Mas eu
tinha até ali agarrado uma esperança. Tinha ouvido dizer que, quando
canoa vira, fica boiando, e é bastante a gente se apoiar nela, encostar
um dedo que seja, para se ter tenência, a constância de não afundar, e
aí ir seguindo, até sobre se sair no seco. Eu disse isso. E o canoeiro
me contradisse: – “Esta é das que afundam inteiras. É canoa de peroba.
Canoa de peroba e de pau-d’óleo não sobrenadam...” Me deu uma tontura. O
ódio que eu quis: ah, tantas canoas no porto, boas canoas boiantes, de
faveira ou tamboril, de imburana, vinhático ou cedro, e a gente tinha
escolhido aquela... Até fosse crime, fabricar dessas, de madeira burra! A
mentira fosse – mas eu devo de ter arregalado dôidos olhos. Quieto,
composto, confronte, o menino via. – “Carece de ter coragem...” – ele me
disse. Visse que vinham minhas lágrimas? Doí de responder: - “Eu não
sei nadar...” O menino sorriu bonito. Afiançou: - “Eu também não sei.”
Sereno, sereno. Eu vi o rio. Via os olhos dele, produziam uma luz. –
“Que é que a gente sente, quando se tem medo?” – ele indagou, mas não
estava remoqueando; não pude ter raiva. – “Você nunca teve medo?” – foi o
que me veio, de dizer. Ele respondeu: - Costumo não...” – e, passado o
tempo dum meu suspiro: – “Meu pai disse que não se deve de ter...” Ao
que meio pasmei. Ainda ele terminou: – “...Meu pai é o homem mais
valente deste mundo.” Aí o bambalango das águas, a avançação enorme
roda-a-roda – o que até hoje, minha vida, avistei, de maior, foi aquele
rio. Aquele, daquele dia. As remadas que se escutavam, do canoeiro, a
gente podia contar, por duvidar se não satisfaziam termo. – “Ah, tu: tem
medo não nenhum?” – ao canoeiro o menino perguntou, com tom. – “Sou
barranqueiro!” – o canoeirinho tresdisse, repontando de seu orgulho. De
tal o menino gostou, porque com a cabeça aprovava. Eu também. O
chapéu-de-couro que ele tinha era quase novo. Os olhos, eu sabia e hoje
ainda mais sei, pegavam um escurecimento duro. Mesmo com a pouca idade
que era a minha, percebi que, de me ver tremido todo assim, o menino
tirava aumento para sua coragem. Mas eu aguentei o aque do olhar dele.
Aqueles olhos então foram ficando bons, retomando brilho. E o menino pôs
a mão na minha, Encostaqva e ficava fazendo parte melhor da minha pele,
no profundo, désse a minhas carnes alguma coisa. Era uma mão branca,
com os dedos dela delicados. – “Você também é animoso...” – me disse.
Amanheci minha aurora. Mas a vergonha que eu sentia agora era de outra
qualidade. Arre vai, o canoeiro cantou, feio, moda de copla que gente
barranqueira usa: “... Meu Rio de São Francisco, nessa maior turvação: vim te dar um gole d’água, mas pedir tua benção...” Aí, o desejado, arribamos na outra beira, a de lá.
Ao ver, o menino mandou encostar: só descemos. –
“Você não arreda daqui, fica tomando conta!” – ele falou para o
canoeiro, que seguiu de cumprir aquela autoridade, desde que amarrou a
correte num pau-pombo. Aonde o menino queria ir? Sofismei, mas fui
andando, fomos, na vargem, no meio-avermelhado do capim-pubo. Sentamos,
por fim, num lugar mais salientado, com pedras, rodeado por áspero
bamburral. Sendo de permanecer assim, sem prazo, isto é, o quase
calados, somente. Sempre os mosquitinhos era que arreliavam, o vulgar. –
“Amigo, quer de comer? Está com fome?” – ele me perguntou. E me deu a
rapadura e o queijo. Ele mesmo, só tocou em miga. Estava pitando. Acabou
de pitar, apanhava talos de capim-capivara, e mastigava; tinha gosto de
milho-verde, é dele que a capivara come. Assim quando me veio vontade
de urinar, e eu disse, ele determinou: – “Há-de, vai ali atrás, longe de
mim, isso faz...” Mais não conversasse; e eu reparei, me acanhava,
comparando como eram pobres as minhas roupas, junto das dele.
Antojo, então, por detrás de nós, sem avisos,
apareceu a cara de um homem! As duas mãos dele afastavam os ramos do
mato, me deu um susto somente. Por certo algum trilho passava perto por
ali, o homem escutara nossa conversa. À fé, era um rapaz, mulato,
regular uns dezoito ou vinte anos; mas altado, forte, com as feições
muito brutas. Debochado, ele disse isto: – “Vocês dois, uê, hem?! Que é
que estão fazendo?...” Aduzido fungou, e, mão no fechado da outra, bateu
um figurado indecente. Olhei para o menino. Esse não semelhava ter
tomado nenhum espanto, surdo sentado ficou, social com seu prático
sorriso. – “Hem, hem? E eu? Também quero!” – o mulato veio insistindo.
E, por aí, eu consegui falar alto, contestando, que não estávamos
fazendo sujice nenhuma, estávamos era espreitando as distâncias do rio e
o parado das coisas. Mas, o que eu menos esperava, ouvi a bonita voz do
menino dizer: – “Você, meu nego? Está certo, chega aqui...” A fala, o
jeito dele, imitavam de mulher. Então, era aquilo? E o mulato,
satisfeito, caminhou para se sentar juntinho dele.
Ah, tem lances, esses – se riscam tão depressa,
olhar da gente não acompanha. Urutú dá e já deu o bote? Só foi assim.
Mulato pulou para trás, ô de um grito, gemido urro. Varou o mato, em
fuga, se ouvia aquela corredoura. O menino abanava a faquinha nua na
mão, e nem se ria. Tinha embebido ferro na coxa do mulato, a ponta
rasgando fundo. A lâmina estava escorrida de sangue rim. Mas o menino
não se aluía do lugar. E limpou a faca no capim, com todo capricho. –
“Quicé que corta...” – foi só o que disse, a si dizendo. Tornou a pôr na
bainha.
Meu receio não passava. O mulato podia voltar,
ter ido buscar uma fôice, garrucha, a reunir companheiros; de nós o que
seria, daí a mais um pouco? Ao menino ponderei isso, encarecendo que a
gente fosse logo embora. – “Carece de ter coragem. Carece de ter muita
coragem...” – ele me moderou, tão gentil. Me alembrei do que antes ele
tinha falado, de seu pai. Indaguei: - “Mas, então, você mora é com seu
tio?” Aí ele se levantou, me chamando para voltarmos. Mas veio demorão,
vagarosinho até aonde a canoa. E não olhava para trás. Não, medo do
mulato, nem de ninguém, ele não conhecia.
Tem de tudo neste mundo, pessoas engraçadas: o
remadorzinho estava dormindo espichado dentro da canoa, com os seus
mosquitos por cima e a camisa empapada de suor de sol. Se alegrou com o
resto da rapadura e do queijo, nos trouxe remando, no meio do rio até
mais cantava. Dessa volta, não lhe dou desenho – tudo igual, igual.
Menos que, por vez, me pareceu depressa demais. – “Você é valente,
sempre?” – em hora eu perguntei. O menino estava molhando as mãos na
água vermelha, esteve tempo pensando. Dando fim, sem me encarar,
declarou assim: - “Sou diferente de todo o mundo. Meu pai disse que eu
careço de ser diferente...” E eu não tinha medo mais. Eu? O sério
pontual é isto, o senhor escute, me escute mais do que eu estou dizendo;
e escute desarmado. O sério é isto, da estória toda – por isto foi que a
estória eu lhe contei –: eu não sentia nada. Só uma transformação,
pesável. Muita coisa importante falta nome.
Minha mãe estava lá no porto, por mim. Tive de ir
com ela, nem pude me despedir direito do Menino. De longe, virei, ele
acenou com a mão, eu respondi. Nem sabia o nome dele. Mas não carecia.
Dele nunca me esqueci, depois, tantos anos todos."