Ela disse: "O que eu vi, eu vi, o resto eu deixo pra vocês". Perguntei se tinha caído da cama, ela disse que até não tardou para acordar. Disse-lhe que era ela quem acordava os pássaros, era ela quem cedo ia para o jardim. Mirou-me um pouco e apontou para o relógio , disse que ele era velho, e que só ele a acompanharia sempre. Achei bonito.
Setembro 2012
quinta-feira, 31 de outubro de 2013
quarta-feira, 30 de outubro de 2013
Adélia Prado, magnífica.
"Quando nasci um anjo
esbelto,
desses que tocam
trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra
mulher,
esta espécie ainda
envergonhada.
Aceito os subterfúgios
que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não
possa casar,
acho o Rio de Janeiro
uma beleza e
ora sim, ora não,
creio em parto sem dor.
Mas o que sinto
escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens,
fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem
pedigree,
já a minha vontade de
alegria,
sua raiz vai ao meu
mil avô.
Vai ser coxo na vida é
maldição pra homem.
Mulher é desdobrável.
Eu sou."
O seio nu
O senhor Palomar
caminha ao longo de uma praia solitária. Encontra poucos banhistas. Uma
mulher jovem está estendida na areia, apanhando sol com os seios
descobertos. Palomar, homem discreto, volve o seu olhar para o horizonte
marinho. Sabe que em semelhantes circunstâncias, quando um desconhecido
se aproxima, as mulheres, geralmente, apressam-se a cobrir-se, e isso
não lhe parece bem: porque é aborrecido para a banhista que apanha sol
tranquilamente; porque o homem que passa sente que importuna; porque o
tabu da nudez fica implicitamente confirmado; porque as convenções não
inteiramente respeitadas propagam a insegurança e a incoerência no
comportamento, em vez da liberdade e da franqueza.
Por
isso, assim que vê aparecer à distância a nuvem brônzeo-rósea de um
torso nu feminino, apressa-se a colocar a cabeça de molde a que a
trajectória do seu olhar permaneça suspensa no vazio, como garante do
seu respeito cívico pela fronteira invisível que circunda as pessoas.
No
entanto - pensa ele continuando a caminhar e, mal o horizonte se
encontra desocupado, retomando o livre movimento do globo ocular - eu,
assim fazendo, ostento uma recusa de ver, eu próprio acabo por reforçar a
convenção que considera ilícita a vista do seio, ou seja, instituo uma
espécie de soutien mental, suspenso entre os meus olhos e
aquele peito, o qual, a julgar pelo reflexo que dele chegou aos confins
do meu campo visual, me pareceu fresco e agradável à vista. Em suma, o
meu não olhar pressupõe que estou a pensar naquela nudez, que me
preocupo com ela, o que no fundo é ainda uma atitude indiscreta e
retrógrada.
Regressando
do seu passeio, Palomar volta a passar diante daquela banhista e desta
vez mantém o olhar fixo à sua frente, de modo a que este aflore com uma
imparcial uniformidade a espuma das ondas que recuam, os cascos dos
barcos postos em seco, a toalha turca estendida na areia, a pródiga lua
cheia de pele mais clara com a auréola castanha do mamilo, o perfil da
costa na bruma que contrasta, cinzenta, contra o céu.
Aí
está - reflecte ele satisfeito consigo próprio, prosseguindo a sua
caminhada - consegui fazer com que o seio fosse completamente absorvido
pela paisagem e com que o meu olhar não tivesse mais peso do que o olhar
de uma gaivota ou de um badejo.
Mas
será verdadeiramente justo proceder assim? - reflecte ainda Palomar. -
Ou não será isso rebaixar a pessoa humana ao nível das coisas,
considerá-la um objecto e, o que é ainda pior, considerar como um
objecto aquilo que na pessoa é específico do sexo feminino? Não estarei
eu talvez a perpetuar o velho hábito da supremacia masculina, enquistada
através dos tempos numa insolência rotineira?
Volta-se
e regressa sobre os seus próprios passos. Agora, ao obrigar o seu olhar
a percorrer a praia com imparcial objectividade, procede de modo a que,
mal o peito da mulher entre no seu campo visual, se note uma
descontinuidade, um desvio, quase um sobressalto. O olhar avança até
aflorar a pele tensa, recua, como que avaliando com um ligeiro arrepio a
consistência diferente da visão e o valor especial que ela adquire, e
fica por um momento a pairar no ar, descrevendo uma curva que acompanha o
relevo do seio a uma certa distância, de uma forma evasiva mas
simultaneamente protectora, para depois retomar o seu curso, como se
nada se tivesse passado.
Creio
que assim a minha posição resulta bem clara - pensa Palomar - sem
qualquer possibilidade de haver mal-entendidos. E, no entanto, este
sobrevoar do olhar não poderia acabar por ser entendido como uma atitude
de superioridade, um subestimar daquilo que um seio é e daquilo que ele
significa, colocando-o, de algum modo, à parte, à margem, ou entre
parêntesis? Lá estou eu outra vez a relegar o seio para a penumbra em
que foi mantido por séculos de pudicícia sexo-maníaca e de pecado de
concupiscência...
Semelhante
interpretação vai contra as melhores intenções de Palomar que, apesar
de pertencer a uma geração madura, para a qual a nudez do peito feminino
era asociada à ideia de intimidade amorosa, aplaude no entanto esta
mudança nos usos e costumes, quer pelo que ela significa como reflexo de
uma mentalidade mais aberta, quer porque uma tal visão lhe é
particularmente grata. É esse apoio desinteressado que ele gostaria de
poder exprimir no seu olhar.
Faz
meia-volta. Com passos decididos, encaminha-se uma vez mais na direcção
da mulher estendida ao sol. Desta vez o seu olhar, lambendo
voluptuosamente a paisagem, deter-se-á sobre os seios com especial
atenção, mas apressar-se-á a considerá-los como parte de um
arrebatamento de benevolência e de gratidão pelo todo, pelo sol e pelo
céu, pelos pinheiros inclinados, pela duna e a areia e os escolhos e as
núvens e as algas, pelo cosmos que gira em torno daqueles cumes
aureolados.
Tanto
deveria bastar para tranquilizar definitivamente a banhista solitária e
para desembaraçar o ambiente de ilações deslocadas. Mas assim que ele
volta a aproximar-se, ei-la que se levanta de repente, cobrindo-se e
bufando aborrecida, afastando-se e encolhendo enfastiadamente os ombros,
como se estivesse a fugir às molestas insistências de um sátiro.
O
peso-morto de uma tradição de maus-costumes não permite que se apreciem
com a devida justiça as intenções mais iluminadas, conclui amargamente o
senhor Palomar.
Italo Calvino, Palomar
terça-feira, 29 de outubro de 2013
O fantasma na praia
"Surpresa do encontro
com o fantasma na praia:
camisa branca,
corpo diáfano,
funções tranquilas
no banho de sol.
O aperto de mão
ao fantasma na praia:
espectro de mão
sem linha de vida,
sem física, química,
história natural.
A cordial conversa
com o fantasma na praia:
voz clara e evidente
de enigma vencido;
conversa tranquila
uma fonte de sustos.
Os jogos infantis
com o fantasma na praia:
decifra logogrifos,
palavras cruzadas;
desenha uma flor
que é também um gato.
Semelhança com um barco
desse fantasma na praia:
correndo na areia
deixava um rastro de barco;
tinha o ar, entre os homens,
de um barco na areia"
João Cabral de Melo Neto
=)
com o fantasma na praia:
camisa branca,
corpo diáfano,
funções tranquilas
no banho de sol.
O aperto de mão
ao fantasma na praia:
espectro de mão
sem linha de vida,
sem física, química,
história natural.
A cordial conversa
com o fantasma na praia:
voz clara e evidente
de enigma vencido;
conversa tranquila
uma fonte de sustos.
Os jogos infantis
com o fantasma na praia:
decifra logogrifos,
palavras cruzadas;
desenha uma flor
que é também um gato.
Semelhança com um barco
desse fantasma na praia:
correndo na areia
deixava um rastro de barco;
tinha o ar, entre os homens,
de um barco na areia"
João Cabral de Melo Neto
=)
Poesia
"Deixa falar todas as coisas visíveis
deixa falar a aparência das coisas que vivem no tempo
deixa, suas vozes serão abafadas.
A voz imensa que dorme no mistério sufocará a todas.
Deixa que tudo só frutificará
na atmosfera sobrenatural da poesia."
João Cabral de Melo Neto - O Cão sem Plumas
deixa falar a aparência das coisas que vivem no tempo
deixa, suas vozes serão abafadas.
A voz imensa que dorme no mistério sufocará a todas.
Deixa que tudo só frutificará
na atmosfera sobrenatural da poesia."
João Cabral de Melo Neto - O Cão sem Plumas
segunda-feira, 28 de outubro de 2013
O engenheiro
"A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
Superfícies, tênis, um copo de água.
O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.
(Em certas tardes nós subíamos
ao edifício. A cidade diária,
como um jornal que todos liam,
ganhava um pulmão de cimento e vidro).
A água, o vento, a claridade,
de um lado o rio, no alto as nuvens,
situavam na natureza o edifício
crescendo de suas forças simples."
João Cabral de Melo Neto
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
Superfícies, tênis, um copo de água.
O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.
(Em certas tardes nós subíamos
ao edifício. A cidade diária,
como um jornal que todos liam,
ganhava um pulmão de cimento e vidro).
A água, o vento, a claridade,
de um lado o rio, no alto as nuvens,
situavam na natureza o edifício
crescendo de suas forças simples."
João Cabral de Melo Neto
Tema Burguês
Quero me desligar da Empresa
Quero me desligar do Partido
Estes aqui já não servem,
como amantes, colegas, amigos.
Pudera desligar-me da existência
se não fosse um covarde vadio
Pudera me desligar do tempo
e de seu doce olvido.
Quisera ser herói
e não ser esse patife
à esquiar nos Andes
passear em Niterói
E pôr o pescoço
em suaves cordas
de um honesto,
honesto,
patíbulo.
Quero me desligar do Partido
Estes aqui já não servem,
como amantes, colegas, amigos.
Pudera desligar-me da existência
se não fosse um covarde vadio
Pudera me desligar do tempo
e de seu doce olvido.
Quisera ser herói
e não ser esse patife
à esquiar nos Andes
passear em Niterói
E pôr o pescoço
em suaves cordas
de um honesto,
honesto,
patíbulo.
sexta-feira, 25 de outubro de 2013
O meu qualquer estilo
de raposa larápia
língua de trapo
O meu qualquer estilo sonha-te rubra no papel
desenhada, desnuda,
clara, no papel.
O meu qualquer estilo desdenha:
Walt Whitman
Fernando Pessoa
Hilda Hilst
(mas os ama, secretamente)
O meu qualquer estilo ignora sensos
lógico-gramaticais
e os dicionários mais liberais
num desacordo mútuo.
O meu qualquer estilo
nem estilo é
de raposa larápia
de língua de trapo.
de raposa larápia
língua de trapo
O meu qualquer estilo sonha-te rubra no papel
desenhada, desnuda,
clara, no papel.
O meu qualquer estilo desdenha:
Walt Whitman
Fernando Pessoa
Hilda Hilst
(mas os ama, secretamente)
O meu qualquer estilo ignora sensos
lógico-gramaticais
e os dicionários mais liberais
num desacordo mútuo.
O meu qualquer estilo
nem estilo é
de raposa larápia
de língua de trapo.
Ela falava que era preciso ter força, como Diadorim, sem nem se saber que era Diadorim: "Há de ter coragem. Há de ter muita coragem..."; Meu amor de ouro, preocupada com minhas futuras decisões, refém dos meus olhos, procurava me advogar - e eu só queria ser forte o bastante para olhá-la com o melhor de mim (que eu nunca cheguei ao melhor de mim...) - ela era assim: mulher forte, mulher vivida de longa solidão, mulher-menina, a dizer veemente que não iria casar, e assim iria ser o meu pra-sempre, a minha mais eleita, porque ela sim, cadeira-cativa, e digo sempre: " Dar ao efêmero o que é do efêmero, e ao Indelével que é do Indelével", e assim, e pronto.
Grande Sertão: Veredas
"Aí pois, de
repente, vi um menino, encostado numa árvore pitando cigarro. Menino
mocinho, pouco menos do que eu, ou devia de regular minha idade. Ali
estava, com um chapéu-de-couro, de sujigola baixada, e se ria para mim.
Não se mexeu. Antes fui eu que vim para perto dele. Então ele foi me
dizendo, com voz muito natural, que aquele comprador era o tio dele, e
que moravam num lugar chamado Os-Porcos, meio-mundo diverso, onde não
tinha nascido. Aquilo ia dizendo, e era um menino bonito, claro, com a
testa alta e os olhos aos-grandes, verdes. Muito tempo mais tarde foi
que eu soube que esse lugarim Os-Porcos existe de se ver, menos longe
daqui, nos gerais de Lassance .
–
“Lá é bom? – perguntei. – “Demais...” – ele me respondeu; e continuou
explicando: – “Meu tio planta de tudo. Mas arroz este ano não plantou,
porque enviuvou de morte de minha tia...” Assim parecesse que tinha
vergonha, de estarem comprando aquele arroz, o senhor veja.
Mas eu olhava esse menino, com um prazer de
companhia, como nunca por ninguém eu não tinha sentido. Achava que ele
era muito diferente, gostei daquelas finas feições, a voz mesma, muito
leve, muito aprazível. Porque ele falava sem mudança, nem intenção, sem
sobejo de esforço, fazia de conversar uma conversinha adulta e antiga.
Fui recebendo em mim um desejo de que ele não fosse mais embora, mas
ficasse, sobre as horas, e assim como estava sendo, sem parolagem miúda,
sem brincadeira – só meu companheiro amigo desconhecido. Escondido
enrolei minha sacola, aí tanto, mesmo em fé de promessa, tive vergonha
de estar esmolando. Mas ele apreciava o trabalho dos homens, chamando
para eles meu olhar, com um jeito de siso. Senti, modo meu de menino,
que ele também se simpatizava a já comigo.
Ao ver que tinha dinheiro de seu, comprou um
quarto de queijo, e um pedaço de rapadura. Disse que ia passear em
canoa. Não pediu licença ao tio dele. Me perguntou se eu vinha. Tudo
fazia com um realce de simplicidade, tanto desmentindo pressa, que a
gente só podia responder que sim. Ele me deu a mão, para me ajudar a
descer o barranco.
As canoas eram algumas, elas todas compridas,
como as de hoje, escavacadas cada qual em tronco de pau de árvore. Uma
estava ocupada, apipada passando as sacas de arroz, e nós escolhemos a
melhor das outras, quase sem água nem lama nenhuma no fundo. Sentei lá
dentro, de pinto em ovo. Ele se sentou em minha frente, estávamos
virados um para o outro. Notei que a canoa se equilibrava mal,
balançando no estado do rio. O menino tinha me dado a mão para descer o
barranco. Era uma mão bonita, macia e quente, agora eu estava
vergonhoso, perturbado. O vacilo da canoa me dava um aumentado receio.
Olhei: aqueles esmerados esmartes olhos, botados verdes, de folhudas
pestanas, luziam um efeito de calma, que até me repassasse. Eu não sabia
nadar. O remador, um menino também, da laia da gente, foi remando.
Bom aquilo não era, tão pouca firmeza. Resolvi ter brio. Só era bom por
estar perto do menino. Nem em minha mãe eu não pensava. Eu estava indo a
meu esmo.
Saiba o senhor, o de-Janeiro é de águas claras. E
é rio cheio de bichos cágados. Se olhava a lado, se via um vivente
desses – em cima de pedra, quentando sol, ou nadando descoberto, exato.
Foi o menino quem me mostrou. E chamou minha atenção para o mato da
beira, em pé, paredão, feito à régua regulado. – “As flores...” – ele
prezou. No alto, eram muitas flores, subitamente vermelhas, de
olho-de-boi e de outras trepadeiras, e as roxas, do mucumã, que é um
feijão bravo; porque se estava no mês de maio, digo – tempo de comprar
arroz, quem não pôde plantar. Um pássaro cantou. Nhambú? E periquitos,
bandos, passavam voando por cima de nós. Não me esqueci de nada, o
senhor vê. Aquele menino, como eu ia poder deslembrar? Um papagaio
vermelho: - “Arara for” – ele me disse. E – quê-quê-quê? – o
araçari perguntava, Ele, o menino, era dessemelhante, já disse, não dava
minúcia de pessoa outra nenhuma. Comparável um suave de ser, mas
asseado e forte – assim se fosse um cheiro bom sem cheiro nenhum
sensível – o senhor represente. As roupas mesmas não tinham nódoa nem
amarrotado nenhum, não fuxicavam. A bem dizer, ele pouco falasse. Se via
que estava apreciando o ar do tempo, calado e sabido, e tudo nele era
segurança em si. Eu queria que ele gostasse de mim.
Mas, com pouco, chegávamos no do-Chico. O senhor
surja: é de repentemente, aquela terrível água de largura: imensidade.
Medo maior que se tem, é de vir canoando num ribeirãozinho, e dar, sem
espera, no corpo dum rio grande. Até pelo mudar. A feiúra com que o São
Francisco puxa, se moendo todo barrento vermelho, recebe para si o
de-Janeiro, quase só um rego verde só. – “Daqui vamos voltar?” – eu
pedi, ansiado. O menino não me olhou – porque já tinha estado me
olhando, como estava. – “Para que?” – ele simples perguntou, em descanso
de paz. O canoeiro, que remava, em pé, foi quem se riu, decerto de mim.
Aí o menino mesmo se sorriu, sem malícia e sem bondade. Não piscava os
olhos. O canoeiro, sem seguir resolução, varejava ali, na barra, entre
duas águas, menos fundas, brincando de rodar mansinho, com a canoa
passeada. Depois, foi entrando no do-Chico, na beirada, para o rumo de
acima. Eu me apeguei de olhar o mato da margem. Beiras sem praia,
tristes, tudo parecendo meio podre, a deixa, lameada ainda da cheia
derradeira, o senhor sabe: quando o do-Chico sobe os seis ou os onze
metros. E se deu que o remador encostou quase a canoa nas canaranas, e
se curvou, queria quebrar um galho de maracujá-do-mato. Com o mau jeito,
a canoa desconversou, o menino também tinha se levantado. Eu disse um
grito – “Tem nada não...” – ele falou, até meigo muito. – “Mas, então,
vocês fiquem sentados...” – eu me queixei. Ele se sentou. Mas, sério
naquela sua formosa simpatia, deu ordem ao canoeiro, com uma palavra só,
firme mas sem vexame: – Atravessa!” O canoeiro obedeceu.
Tive medo. Sabe? Tudo foi isso: tive medo!
Enxerguei os confins do rio, do outro lado. Longe, longe, com que prazo
se ir até lá? Medo e vergonha. A aguagem bruta, traiçoeira – o rio é
cheio de baques, modos moles, de esfrio, e uns sussurros de desamparo.
Apertei os dedos no pau da canoa. Não me lembrei do Caboclo-d’Água, não
me lembrei do perigo que á a “onça-d’água”, se diz – a ariranha – essas
desmergulham, em bando, e bécam a gente: rodeando e então fazendo a
canoa virar, de estudo. Não pensei nada. Eu tinha o medo imediato. E
tanta claridade do dia. O arrojo do rio, e só aquele estrape, e o risco
extenso d’água, de parte a parte. Alto rio, fechei os olhos. Mas eu
tinha até ali agarrado uma esperança. Tinha ouvido dizer que, quando
canoa vira, fica boiando, e é bastante a gente se apoiar nela, encostar
um dedo que seja, para se ter tenência, a constância de não afundar, e
aí ir seguindo, até sobre se sair no seco. Eu disse isso. E o canoeiro
me contradisse: – “Esta é das que afundam inteiras. É canoa de peroba.
Canoa de peroba e de pau-d’óleo não sobrenadam...” Me deu uma tontura. O
ódio que eu quis: ah, tantas canoas no porto, boas canoas boiantes, de
faveira ou tamboril, de imburana, vinhático ou cedro, e a gente tinha
escolhido aquela... Até fosse crime, fabricar dessas, de madeira burra! A
mentira fosse – mas eu devo de ter arregalado dôidos olhos. Quieto,
composto, confronte, o menino via. – “Carece de ter coragem...” – ele me
disse. Visse que vinham minhas lágrimas? Doí de responder: - “Eu não
sei nadar...” O menino sorriu bonito. Afiançou: - “Eu também não sei.”
Sereno, sereno. Eu vi o rio. Via os olhos dele, produziam uma luz. –
“Que é que a gente sente, quando se tem medo?” – ele indagou, mas não
estava remoqueando; não pude ter raiva. – “Você nunca teve medo?” – foi o
que me veio, de dizer. Ele respondeu: - Costumo não...” – e, passado o
tempo dum meu suspiro: – “Meu pai disse que não se deve de ter...” Ao
que meio pasmei. Ainda ele terminou: – “...Meu pai é o homem mais
valente deste mundo.” Aí o bambalango das águas, a avançação enorme
roda-a-roda – o que até hoje, minha vida, avistei, de maior, foi aquele
rio. Aquele, daquele dia. As remadas que se escutavam, do canoeiro, a
gente podia contar, por duvidar se não satisfaziam termo. – “Ah, tu: tem
medo não nenhum?” – ao canoeiro o menino perguntou, com tom. – “Sou
barranqueiro!” – o canoeirinho tresdisse, repontando de seu orgulho. De
tal o menino gostou, porque com a cabeça aprovava. Eu também. O
chapéu-de-couro que ele tinha era quase novo. Os olhos, eu sabia e hoje
ainda mais sei, pegavam um escurecimento duro. Mesmo com a pouca idade
que era a minha, percebi que, de me ver tremido todo assim, o menino
tirava aumento para sua coragem. Mas eu aguentei o aque do olhar dele.
Aqueles olhos então foram ficando bons, retomando brilho. E o menino pôs
a mão na minha, Encostaqva e ficava fazendo parte melhor da minha pele,
no profundo, désse a minhas carnes alguma coisa. Era uma mão branca,
com os dedos dela delicados. – “Você também é animoso...” – me disse.
Amanheci minha aurora. Mas a vergonha que eu sentia agora era de outra
qualidade. Arre vai, o canoeiro cantou, feio, moda de copla que gente
barranqueira usa: “... Meu Rio de São Francisco, nessa maior turvação: vim te dar um gole d’água, mas pedir tua benção...” Aí, o desejado, arribamos na outra beira, a de lá.
Ao ver, o menino mandou encostar: só descemos. –
“Você não arreda daqui, fica tomando conta!” – ele falou para o
canoeiro, que seguiu de cumprir aquela autoridade, desde que amarrou a
correte num pau-pombo. Aonde o menino queria ir? Sofismei, mas fui
andando, fomos, na vargem, no meio-avermelhado do capim-pubo. Sentamos,
por fim, num lugar mais salientado, com pedras, rodeado por áspero
bamburral. Sendo de permanecer assim, sem prazo, isto é, o quase
calados, somente. Sempre os mosquitinhos era que arreliavam, o vulgar. –
“Amigo, quer de comer? Está com fome?” – ele me perguntou. E me deu a
rapadura e o queijo. Ele mesmo, só tocou em miga. Estava pitando. Acabou
de pitar, apanhava talos de capim-capivara, e mastigava; tinha gosto de
milho-verde, é dele que a capivara come. Assim quando me veio vontade
de urinar, e eu disse, ele determinou: – “Há-de, vai ali atrás, longe de
mim, isso faz...” Mais não conversasse; e eu reparei, me acanhava,
comparando como eram pobres as minhas roupas, junto das dele.
Antojo, então, por detrás de nós, sem avisos,
apareceu a cara de um homem! As duas mãos dele afastavam os ramos do
mato, me deu um susto somente. Por certo algum trilho passava perto por
ali, o homem escutara nossa conversa. À fé, era um rapaz, mulato,
regular uns dezoito ou vinte anos; mas altado, forte, com as feições
muito brutas. Debochado, ele disse isto: – “Vocês dois, uê, hem?! Que é
que estão fazendo?...” Aduzido fungou, e, mão no fechado da outra, bateu
um figurado indecente. Olhei para o menino. Esse não semelhava ter
tomado nenhum espanto, surdo sentado ficou, social com seu prático
sorriso. – “Hem, hem? E eu? Também quero!” – o mulato veio insistindo.
E, por aí, eu consegui falar alto, contestando, que não estávamos
fazendo sujice nenhuma, estávamos era espreitando as distâncias do rio e
o parado das coisas. Mas, o que eu menos esperava, ouvi a bonita voz do
menino dizer: – “Você, meu nego? Está certo, chega aqui...” A fala, o
jeito dele, imitavam de mulher. Então, era aquilo? E o mulato,
satisfeito, caminhou para se sentar juntinho dele.
Ah, tem lances, esses – se riscam tão depressa,
olhar da gente não acompanha. Urutú dá e já deu o bote? Só foi assim.
Mulato pulou para trás, ô de um grito, gemido urro. Varou o mato, em
fuga, se ouvia aquela corredoura. O menino abanava a faquinha nua na
mão, e nem se ria. Tinha embebido ferro na coxa do mulato, a ponta
rasgando fundo. A lâmina estava escorrida de sangue rim. Mas o menino
não se aluía do lugar. E limpou a faca no capim, com todo capricho. –
“Quicé que corta...” – foi só o que disse, a si dizendo. Tornou a pôr na
bainha.
Meu receio não passava. O mulato podia voltar,
ter ido buscar uma fôice, garrucha, a reunir companheiros; de nós o que
seria, daí a mais um pouco? Ao menino ponderei isso, encarecendo que a
gente fosse logo embora. – “Carece de ter coragem. Carece de ter muita
coragem...” – ele me moderou, tão gentil. Me alembrei do que antes ele
tinha falado, de seu pai. Indaguei: - “Mas, então, você mora é com seu
tio?” Aí ele se levantou, me chamando para voltarmos. Mas veio demorão,
vagarosinho até aonde a canoa. E não olhava para trás. Não, medo do
mulato, nem de ninguém, ele não conhecia.
Tem de tudo neste mundo, pessoas engraçadas: o
remadorzinho estava dormindo espichado dentro da canoa, com os seus
mosquitos por cima e a camisa empapada de suor de sol. Se alegrou com o
resto da rapadura e do queijo, nos trouxe remando, no meio do rio até
mais cantava. Dessa volta, não lhe dou desenho – tudo igual, igual.
Menos que, por vez, me pareceu depressa demais. – “Você é valente,
sempre?” – em hora eu perguntei. O menino estava molhando as mãos na
água vermelha, esteve tempo pensando. Dando fim, sem me encarar,
declarou assim: - “Sou diferente de todo o mundo. Meu pai disse que eu
careço de ser diferente...” E eu não tinha medo mais. Eu? O sério
pontual é isto, o senhor escute, me escute mais do que eu estou dizendo;
e escute desarmado. O sério é isto, da estória toda – por isto foi que a
estória eu lhe contei –: eu não sentia nada. Só uma transformação,
pesável. Muita coisa importante falta nome.
Minha mãe estava lá no porto, por mim. Tive de ir
com ela, nem pude me despedir direito do Menino. De longe, virei, ele
acenou com a mão, eu respondi. Nem sabia o nome dele. Mas não carecia.
Dele nunca me esqueci, depois, tantos anos todos."
quinta-feira, 24 de outubro de 2013
quarta-feira, 23 de outubro de 2013
segunda-feira, 21 de outubro de 2013
Manoel de Barros
"Distâncias somavam a gente para menos.
Nossa morada estava tão perto do abandono que dava até
Nossa morada estava tão perto do abandono que dava até
para a gente pegar nele.
Eu conversava bobagens profundas com os sapos,
com as águas e com as árvores.
Meu avô abastecia a solidão.
A natureza avançava nas minhas palavras tipo assim:
O dia está frondoso em borboletas.
No amanhecer o sol põe glórias no meu olho.
O cinzento da tarde me empobrece.
E o rio encosta as margens na minha voz.
Essa fusão com a natureza tirava de mim a liberdade de pensar.
Eu queria que as garças me sonhassem.
Eu queria que as palavras me gorjeassem.
Então comecei a fazer desenhos verbais de imagens.
Me dei bem (...) Poesia é a infância da língua.
Sei que os meus desenhos verbais nada significam.
Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba.
Eu sei. Sobre o nada tenho profundidades"
Eu conversava bobagens profundas com os sapos,
com as águas e com as árvores.
Meu avô abastecia a solidão.
A natureza avançava nas minhas palavras tipo assim:
O dia está frondoso em borboletas.
No amanhecer o sol põe glórias no meu olho.
O cinzento da tarde me empobrece.
E o rio encosta as margens na minha voz.
Essa fusão com a natureza tirava de mim a liberdade de pensar.
Eu queria que as garças me sonhassem.
Eu queria que as palavras me gorjeassem.
Então comecei a fazer desenhos verbais de imagens.
Me dei bem (...) Poesia é a infância da língua.
Sei que os meus desenhos verbais nada significam.
Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba.
Eu sei. Sobre o nada tenho profundidades"
domingo, 20 de outubro de 2013
sábado, 19 de outubro de 2013
sexta-feira, 18 de outubro de 2013
quinta-feira, 17 de outubro de 2013
Rainha dos Raios
"Eu sou o céu para as tuas tempestades
Um céu partido ao meio no meio da tarde
Eu sou um céu para as tuas tempestades
Deusa pagã dos relâmpagos
Das chuvas de todo ano
Dentro de mim"
Caetano Veloso - Maria Bethânia
Inconstância dos bens do mundo
"Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.
Porém, se acaba o Sol, por que nascia?
Se é tão formosa a Luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?
Mas no Sol, e na Luz falte a firmeza,
Na formosura não se dê Constancia,
E na alegria sinta-se tristeza.
Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância."
Gregório de Matos
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.
Porém, se acaba o Sol, por que nascia?
Se é tão formosa a Luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?
Mas no Sol, e na Luz falte a firmeza,
Na formosura não se dê Constancia,
E na alegria sinta-se tristeza.
Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância."
Gregório de Matos
quarta-feira, 16 de outubro de 2013
terça-feira, 15 de outubro de 2013
No País da Guilhotina
Na França as pessoas olham nos olhos, ela me disse.
Se tu abaixas a cabeça...te acertam a guilhotina!, e riu.
Se tu abaixas a cabeça...te acertam a guilhotina!, e riu.
E surgem da mesma fonte:
Melpomêne, e Talia.
Com seus humores inatos, sempiternos.
que lhes custaram as rugas do rosto
seja tragédia ou alegria:
céu ou inferno.
Urdirá os dias e as noites
a amarga Aracne
Sofrerá do bico da águia
o fígado de Prometeu
Pois entre os deuses até mesmo a piedade
é castigada.
E entre os homens, mesmo os santos
receberão seu martírio
por justa causa.
Melpomêne, e Talia.
Com seus humores inatos, sempiternos.
que lhes custaram as rugas do rosto
seja tragédia ou alegria:
céu ou inferno.
Urdirá os dias e as noites
a amarga Aracne
Sofrerá do bico da águia
o fígado de Prometeu
Pois entre os deuses até mesmo a piedade
é castigada.
E entre os homens, mesmo os santos
receberão seu martírio
por justa causa.
L'esprit de l'escalier
"Pois este abismo é o inferno
por tantos povoado!
Nele rolemos sem remorso,
cruel parceria,
A fim de que o ódio nos aqueça
a vida inteira."
Charles Baudelaire
por tantos povoado!
Nele rolemos sem remorso,
cruel parceria,
A fim de que o ódio nos aqueça
a vida inteira."
Charles Baudelaire
segunda-feira, 14 de outubro de 2013
Poema Metafísico
Nada posso
traduzir do teu númeno;
Inexprimir em gestos, figuras;
Que palavras são mais
que este vento que lateja nos lábios.
Pois vá para onde quiser!
meus passos irão voando atrás dos teus
meus olhos hão de te encontrar
nem que seja dentro de mim.
traduzir do teu númeno;
Inexprimir em gestos, figuras;
Que palavras são mais
que este vento que lateja nos lábios.
Pois vá para onde quiser!
meus passos irão voando atrás dos teus
meus olhos hão de te encontrar
nem que seja dentro de mim.
domingo, 13 de outubro de 2013
Por mais que tentasse eu nunca passava desapercebida pelas crianças. De longe veio uma trazendo um rato (ou um sapo) entre as mãos. Dizia "vou matá-lo", duas meninas correram gritando. Lembrei de quando, uma vez, corri com uma rã nas mãos, e eu era criança. A mesma cena, a mesma mise-en-scene. Voltei a estação de trem abandonada (sim, isso se passava lá), no galpão,várias fantasias de carnaval. Um vagão cor de chumbo repousava à décadas, próximo. Pensei: afinal de contas, muitos meninos haveriam de apanhar ratos e sapos e correr atrás de meninas, e depois ter o desejo de matá-los; Devia ser um estado de alma que todos os meninos haveriam de passar na sua infância, como um ritual. Não era um rato, era um pássaro, (o que de alguma maneira absurda tornava mais triste a história), pedi ao menino que o soltasse, ele disse que não adiantava, pois o pássaro já não voava; Eu disse que devia ser porque ele estava assustado, ele disse que não, mas soltou. O pássaro não se mexeu. Quando virei as costas ele voou. Voou baixo e cambaleou um pouco, sob o tilintar das moedas em meu bolso.
(2012)
O dia em que fiquei a sós com Vênus de Milo
Quando fiquei a sós com Vênus de Milo
esperava que me dissesse algo:
Deu de ombros,
não tinha braços para me dar adeus;
e por fim, deixou-me alguma identidade de pedra.
esperava que me dissesse algo:
Deu de ombros,
não tinha braços para me dar adeus;
e por fim, deixou-me alguma identidade de pedra.
Espaço e Tempo e Borges já se afastam
"Na aurora posso ouvir um escarcéu
como o rumor das turbas que se apartam;
são tudo o que me amou e me esqueceu;
espaço e tempo e Borges já se afastam."
J. L. Borges
como o rumor das turbas que se apartam;
são tudo o que me amou e me esqueceu;
espaço e tempo e Borges já se afastam."
J. L. Borges
sábado, 12 de outubro de 2013
Chá de gengibre pra curar na caneca-presente da ex-namorada. O incenso é de alecrim: bons estímulos, proteção e limpeza. A vela é do oriente. A chaleirinha presente da mãe, quando eu nasci. O verso do Borges e da Cecília Meireles. A promessa de um café depois que terminar a tese. A musiquinha antiga, que me faz lembrar...Uma notícia boa (distorcida, é claro); Um bolo bonito pra enfeitar a mesa de sábado. Um filminho uruguaio pra adormecer. Pois afinal de contas, nem tudo, nem tudo esta perdido, e são só dias, uma vida inteira.
sexta-feira, 11 de outubro de 2013
Porque nada mais eram que voltas e voltas de longas espirais, que me levariam a ti, como todos os caminhos levam para Roma
"Levai-me aonde quiserdes. Aprendi com as primaveras; a deixar-me cortar e voltar sempre inteira."
Cecília Meireles
Cecília Meireles
Dois poemas ingleses (trecho) - Jorge Luis Borges
"I
A madrugada inútil me encontra numa esquina deserta;
sobrevivi à noite.
As noites são ondas altivas: ondas de crista pesada,
azul-escuras, carregadas de todos os tons de terra
profunda, de coisas desejáveis e improváveis.
As noites são dadas a misteriosas dádivas e recusas,
as coisas meio entregues, meio retidas, a êxtases com
um hemisfério escuro. Assim agem as noites, eu te digo.
(...)
A madrugada esmagadora me encontra numa rua
deserta de minha cidade.
Teu perfil voltado para o outro lado, os sons que formam
teu nome, o ritmo de teu riso: esses, os ilustres
brinquedos que me legaste.
Eu os reviro na madrugada, e os perco, e os acho,
conto-os aos raros cães vadios e às raras estrelas
vadias da madrugada.
Tua vida escura e rica...
Preciso chegar a tí, não sei como: guardo os ilustres
brinquedos que me legaste, quero teu olhar oculto,
teu sorriso real - aquele sorriso solitário
e zombedeiro que teu espelho frio conhece.
II
Com que posso prender-te?
Ofereço-te ruas magras, crepúsculos desesperados, a lua
dos subúrbios esgarçados.
Ofereço-te o amargor de um homem que mirou e mirou
demoradamente a lua solitária.
Ofereço-te meus ancestrais, meus mortos, os espectros
que homens vivos honraram em mármore (...)
Ofereço-te o que de revelações houver em meus livros,
o que de hombridade e humor houver em minha vida.
Ofereço-te a lealdade de um homem que nunca foi leal.
Ofereço-te o cerne de mim que conservei, não sei como
- o coração central que não lida com palavras,
não trafica com sonhos e é imune ao tempo, à alegria,
às adversidades.
Ofereço-te a lembrança de uma rosa amarela vista
ao crepúsculo, anos antes de nasceres.
Ofereço-te explicações de ti, teorias sobre ti, notícias
verídicas e surpreendentes de ti.
Posso te dar minha solidão, minha treva, a fome
de meu coração; tento subornar-te com a incerteza,
o perigo, a derrota."
A madrugada inútil me encontra numa esquina deserta;
sobrevivi à noite.
As noites são ondas altivas: ondas de crista pesada,
azul-escuras, carregadas de todos os tons de terra
profunda, de coisas desejáveis e improváveis.
As noites são dadas a misteriosas dádivas e recusas,
as coisas meio entregues, meio retidas, a êxtases com
um hemisfério escuro. Assim agem as noites, eu te digo.
(...)
A madrugada esmagadora me encontra numa rua
deserta de minha cidade.
Teu perfil voltado para o outro lado, os sons que formam
teu nome, o ritmo de teu riso: esses, os ilustres
brinquedos que me legaste.
Eu os reviro na madrugada, e os perco, e os acho,
conto-os aos raros cães vadios e às raras estrelas
vadias da madrugada.
Tua vida escura e rica...
Preciso chegar a tí, não sei como: guardo os ilustres
brinquedos que me legaste, quero teu olhar oculto,
teu sorriso real - aquele sorriso solitário
e zombedeiro que teu espelho frio conhece.
II
Com que posso prender-te?
Ofereço-te ruas magras, crepúsculos desesperados, a lua
dos subúrbios esgarçados.
Ofereço-te o amargor de um homem que mirou e mirou
demoradamente a lua solitária.
Ofereço-te meus ancestrais, meus mortos, os espectros
que homens vivos honraram em mármore (...)
Ofereço-te o que de revelações houver em meus livros,
o que de hombridade e humor houver em minha vida.
Ofereço-te a lealdade de um homem que nunca foi leal.
Ofereço-te o cerne de mim que conservei, não sei como
- o coração central que não lida com palavras,
não trafica com sonhos e é imune ao tempo, à alegria,
às adversidades.
Ofereço-te a lembrança de uma rosa amarela vista
ao crepúsculo, anos antes de nasceres.
Ofereço-te explicações de ti, teorias sobre ti, notícias
verídicas e surpreendentes de ti.
Posso te dar minha solidão, minha treva, a fome
de meu coração; tento subornar-te com a incerteza,
o perigo, a derrota."
quinta-feira, 10 de outubro de 2013
"O mundo não vale o mundo"
"O mundo não vale o mundo", é preciso que saiba disso, que compreenda , assim se convencerá que nem tudo está perdido, pois tudo já está perdido, e o mundo não vale o mundo.
Se tu és criança, és titã,e tem um coração hercúleo: descansa, pois o mundo não vale o mundo, meu bem, e tu não és desta terra.
E serão vãos todos os teus atos heróicos que se abrirão em histórias; os homens já não compreendem tais mitologias e matam os deuses todos os dias. Os deuses, e todas as criaturas.
Abandona a fúria, deixa só a indiferença, pois o mundo não vale o mundo, meu bem, o mundo não vale o mundo.
Deixa o tempo engolir teus olhos para não mais sentir, nem pensar, nem olhar, e se iludir.
Pois o mundo não vale o mundo, Carlos, tu bem sabias.
Se tu és criança, és titã,e tem um coração hercúleo: descansa, pois o mundo não vale o mundo, meu bem, e tu não és desta terra.
E serão vãos todos os teus atos heróicos que se abrirão em histórias; os homens já não compreendem tais mitologias e matam os deuses todos os dias. Os deuses, e todas as criaturas.
Abandona a fúria, deixa só a indiferença, pois o mundo não vale o mundo, meu bem, o mundo não vale o mundo.
Deixa o tempo engolir teus olhos para não mais sentir, nem pensar, nem olhar, e se iludir.
Pois o mundo não vale o mundo, Carlos, tu bem sabias.
quarta-feira, 9 de outubro de 2013
terça-feira, 8 de outubro de 2013
segunda-feira, 7 de outubro de 2013
domingo, 6 de outubro de 2013
"(...) Nós não nos mexíamos; estavamos quietos, recostados à parede, ouvindo-a. E a mulher disse:
-Se ele quer levá-los é diferente. Afinal de contas, ninguém daria importância ao que disser um menino.
A voz infantil interveio:
-Se saio à rua com eles e digo que são os homens a quem os alcaravões arrancaram os olhos, os meninos me atirariam pedras. Todo mundo diz na rua que isso não pode acontecer.
Houve um instante de silêncio. Em seguida, a porta voltou a fechar-se, e o menino voltou a falar:
- E depois, agora estou lendo Terry e os Piratas.
Alguém nos disse ao ouvido:
-Vou convencê-lo.
Arrastou-se até onde estava a voz.
- Eu gosto disso - disse. - Pelo menos, conte o que aconteceu a Terry esta semana.
Está tentando conquistar sua confiança, pensamos. Mas o menino disse:
- Isso não me interessa. A única coisa que me agrada é o colorido.
- Terry estava em um labirinto - dissemos.
E o menino disse:
-Isso foi na sexta-feira. Hoje é domingo e o que me interessa é o colorido - disse-o com a voz fria, desapaixonada, indiferente."
Olhos de cão Azul - G. G. Márquez
-Se ele quer levá-los é diferente. Afinal de contas, ninguém daria importância ao que disser um menino.
A voz infantil interveio:
-Se saio à rua com eles e digo que são os homens a quem os alcaravões arrancaram os olhos, os meninos me atirariam pedras. Todo mundo diz na rua que isso não pode acontecer.
Houve um instante de silêncio. Em seguida, a porta voltou a fechar-se, e o menino voltou a falar:
- E depois, agora estou lendo Terry e os Piratas.
Alguém nos disse ao ouvido:
-Vou convencê-lo.
Arrastou-se até onde estava a voz.
- Eu gosto disso - disse. - Pelo menos, conte o que aconteceu a Terry esta semana.
Está tentando conquistar sua confiança, pensamos. Mas o menino disse:
- Isso não me interessa. A única coisa que me agrada é o colorido.
- Terry estava em um labirinto - dissemos.
E o menino disse:
-Isso foi na sexta-feira. Hoje é domingo e o que me interessa é o colorido - disse-o com a voz fria, desapaixonada, indiferente."
Olhos de cão Azul - G. G. Márquez
sábado, 5 de outubro de 2013
quinta-feira, 3 de outubro de 2013
"Era uma tolice , mas sentia nojo de chupar uma laranja. Sabia que "o menino" havia subido até as flores da laranjeira e que as frutas do próximo outono estariam inchadas com sua carne, renovadas com o extraordinário frescor de sua morte. Não. Não podia chupá-las. Sabia que debaixo de cada laranjeira, em todo o mundo, havia um menino enterrado, que adoçava as frutas com a cal de seus ossos."
Eva está dentro de seu gato - "Olhos de Cão Azul" - G. García Márquez
Imagem: Chagall
Imagem: Chagall
terça-feira, 1 de outubro de 2013
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