quinta-feira, 27 de dezembro de 2012
segunda-feira, 24 de dezembro de 2012
Um senhor muito velho com asas muito grandes
No terceiro dia de chuva tinham matado tantos caranguejos dentro de casa que Pelayo teve de atravessar o seu pátio inundado para atirá‑los ao mar, pois o bebé recém‑nascido tinha passado a noite com febre e pensava‑se que era por causa da pestilência. O mundo estava triste desde terça‑feira. O céu e o mar eram uma única e mesma coisa de cinza e as areias da praia, que em Março resplandeciam como poeira de luz, tinham‑se transformado numa papa de lodo e mariscos podres. A luz era tão fraca ao meio‑dia que, quando Pelayo regressava a casa depois de ter deitado fora os caranguejos, teve dificuldade em ver o que era que se movia e gemia no fundo do pátio. Teve de aproximar‑se muito, para descobrir que era um homem velho, que estava caído de borco no lodaçal e que, apesar dos seus grandes esforços, não podia levantar‑se, porque lho impediam as suas enormes asas.
Assustado por aquela visão aflitiva, Pelayo correu em busca de Elisenda, sua mulher, que estava a pôr compressas ao bebé doente, e levou‑a até ao fundo do pátio. Ambos observaram o corpo caído com um silencioso pasmo. Estava vestido como um trapeiro. Não lhe restavam mais do que uns fiapos descoloridos no crânio pelado e pouquíssimos dentes na boca, e essa lastimosa condição de bisavô ensopado tinha‑o desprovido de qualquer grandeza. As suas asas de abutre velho, sujas e meio depenadas, estavam encalhadas para sempre no lodaçal. Tanto o observaram, e com tanta atenção, que Pelayo e Elisenda muito rapidamente se recompuseram do assombro e acabaram por achá‑lo familiar. Então atreveram‑se a falar‑lhe, e ele respondeu‑lhes num dialecto incompreensível, mas com uma boa voz de navegante. Foi por isso que deixaram de preocupar‑se com o inconveniente das asas e chegaram à sensata conclusão de que era um náufrago solitário de algum navio estrangeiro, desfeito pelo temporal. Contudo, chamaram, para que o visse, uma vizinha que sabia todas as coisas da vida e da morte, e a ela chegou‑lhe um olhar para tirá‑los do engano.
‑ É um anjo ‑ disse‑lhes. ‑ Com certeza vinha por causa da criança, mas o desgraçado está tão velho que a chuva o fez cair.
No dia seguinte toda a gente sabia que em casa de Pelayo tinham cativo um anjo de carne e osso. Contra o critério da vizinha sábia, para quem os anjos destes tempos eram sobreviventes fugitivos de uma conspiração celestial, não tinham tido coragem para matá‑lo à paulada. Pelayo esteve toda a tarde a vigiá‑lo, da cozinha, armado com o seu garrote de aguazil, e, antes de deitar‑se, tirou‑o de rastros do lodaçal e fechou‑o com as galinhas no galinheiro alambrado. À meia‑noite, quando terminou a chuva, Pelayo e Elisenda continuavam a matar caranguejos. Pouco depois o menino acordou, sem febre e com desejos de comer. Então sentiram‑se magnânimos e decidiram pôr o anjo numa balsa com água doce e provisões para três dias e abandoná‑lo à sua sorte no mar alto. Mas, quando foram ao pátio com as primeiras claridades, encontraram toda a vizinhança em frente do galinheiro, divertindo‑se com o anjo, sem a menor devoção e a atirar‑lhe coisas para comer pelos buracos dos alambres, como se não se tratasse de uma criatura sobrenatural, mas sim de um animal de circo.
O padre Gonzaga chegou antes das sete, alarmado pela desproporção da notícia. A essa hora já tinham acorrido curiosos menos frívolos que os do amanhecer e tinham feito toda a espécie de suposições sobre o futuro do cativo. Os mais simples pensavam que seria nomeado alcaide do mundo. Outros, de espírito mais austero, supunham que seria promovido a general de cinco estrelas, para que ganhasse todas as guerras. Alguns visionários esperavam que fosse conservado como reprodutor, para implantar na Terra uma estirpe de homens alados e sábios que se encarregassem do universo. Mas o padre Gonzaga, antes de ser cura, tinha sido lenhador vigoroso. Chegado aos alambres, fez uma rápida revisão do seu catecismo, e, entretanto, pediu que lhe abrissem a porta, para examinar de perto aquele varão de lástima que mais parecia uma enorme galinha decrépita entre as galinhas absortas. Estava deitado num canto, secando ao sol as asas estendidas, entre as cascas de frutas e as sobras de pequenos‑almoços que lhe tinham atirado os madrugadores. Alheio às impertinências do mundo, mal levantou os seus olhos de antiquário e murmurou alguma coisa no seu dialecto quando o padre Gonzaga entrou no galinheiro e lhe deu os bons‑dias em latim. O pároco teve a primeira suspeita da sua impostura ao verificar que não compreendia a língua de Deus nem sabia cumprimentar os seus ministros. A seguir, observou que, visto de perto, tinha a aparência demasiado humana: tinha um insuportável odor de intempérie, o avesso das asas semeado de algas parasitárias e as penas maiores maltratadas por ventos terrestres, e nada da sua natureza miserável estava de acordo com a egrégia dignidade dos anjos. Então abandonou o galinheiro e, com um breve sermão, preveniu os curiosos contra os riscos da ingenuidade. Recordou‑lhes que o Demónio tinha o mau hábito de servir‑se de artifícios de Carnaval para confundir os incautos. Argumentou que, se as asas não eram o elemento essencial para determinar as diferenças entre um gavião e um aeroplano, muito menos o podiam ser para reconhecer os anjos. No entanto, prometeu escrever uma carta ao seu bispo, para que este escrevesse outra ao seu primaz e para que este escrevesse outra ao Sumo Pontífice, de maneira que o veredicto final viesse dos tribunais mais altos.
A sua prudência caiu em corações estéreis. A notícia do anjo cativo divulgou‑se com tanta rapidez que ao cabo de poucas horas havia no pátio um alvoroço de mercado, e tiveram de levar a tropa, com baionetas, para espantar o tumulto, que já estava quase a deitar a casa abaixo. Elisenda, com o espinhaço torcido de tanto varrer lixo de feira, teve então a boa ideia de taipar o pátio e receber cinco centavos pela entrada para ver o anjo.
Vieram curiosos até da Martinica. Veio uma feira ambulante com um acrobata voador, que passou a zumbir várias vezes por cima da multidão, mas ninguém lhe ligou importância, porque as suas asas não eram de anjo, mas de morcego sideral. Vieram em busca de saúde os doentes mais infelizes do Caribe: uma pobre mulher que desde criança estava a contar os latejos do seu coração e já não tinha números que lhe chegassem, um jamaicano que não podia dormir porque o atormentava o ruído das estrelas, um sonâmbulo que se levantava de noite para desfazer as coisas que tinha feito acordado, e muitos outros de menor gravidade. No meio daquela desordem de naufrágio que fazia tremer a terra, Pelayo e Elisenda estavam felizes de cansaço, porque em menos de uma semana atulhavam de dinheiro os quartos de dormir, e, todavia, a fila de peregrinos que esperavam vez para entrar chegava até ao outro lado do horizonte.
O anjo era o único que não participava do seu próprio acontecimento. O tempo ia‑se‑lhe em procurar acomodação no seu ninho emprestado, aturdido pelo calor de inferno das lamparinas de azeite e das velas de sacrifício que lhe encostavam aos alambres. Ao princípio insistiram para que comesse cristais de cânfora, que, de acordo com a sabedoria da vizinha sábia, era o alimento específico dos anjos. Mas ele desprezava‑os, como desprezou, sem os provar, os almoços papais que lhe levavam os penitentes, e nunca se soube se foi por ser anjo ou por ser velho que acabou por comer nada mais que papas de beringela. A sua única virtude sobrenatural parecia ser a paciência. Sobretudo nos primeiros tempos, quando o espiolhavam as galinhas em busca dos parasitas estelares que proliferavam nas suas asas e os aleijados lhe arrancavam penas, para tocar com elas nos seus defeitos, e até os mais piedosos lhe atiravam pedras, tentando conseguir que se levantasse, para vê‑lo de corpo inteiro. A única vez que conseguiram perturbá‑lo foi quando lhe queimaram as costas com um ferro de marcar novilhos, porque havia tantas horas que estava imóvel que pensaram que estava morto. Acordou sobressaltado, disparatando em língua hermética e com os olhos em lágrimas, e bateu as asas duas vezes, o que provocou um remoinho de estrume de galinheiro e pó lunar e um vendaval de pânico que não parecia deste mundo. Apesar de muitos terem ficado convencidos de que a sua reacção não tinha sido de raiva, mas sim de dor, desde esse dia trataram de não o incomodar, porque a maioria compreendeu que a sua passividade não era a de um herói em gozo de boa reforma, mas a de um cataclismo em repouso.
O padre Gonzaga enfrentou a frivolidade da multidão com fórmulas de inspiração doméstica, enquanto lhe chegava um parecer decisivo sobre a natureza do cativo. Mas o correio de Roma tinha perdido a noção da urgência. O tempo ia‑se‑lhes a averiguar se o prisioneiro tinha umbigo, se o seu dialecto tinha alguma coisa a ver com o aramaico, se podia caber muitas vezes na ponta dum alfinete, ou se não seria simplesmente um norueguês com asas. Aquelas cartas de parcimónia teriam ido e vindo até ao fim dos séculos se um acontecimento providencial não tivesse posto um fim às tribulações do pároco.
Sucedeu que, por esses dias, entre muitas outras atracções das feiras ambulantes do Caribe, levaram ao povoado o espectáculo triste da mulher que se tinha convertido em aranha por ter desobedecido a seus pais. A entrada para a ver não só custava menos que a entrada para ver o anjo, mas ainda permitiam fazer‑lhe toda a espécie de perguntas sobre a sua absurda condição e examiná‑la pelo direito e pelo avesso, de maneira que ninguém pusesse em dúvida a veracidade do horror. Era uma tarântula espantosa do tamanho de um carneiro e com a cabeça de uma donzela triste. Porém, o mais aflitivo não era a sua aparência de disparate, mas a sincera aflição com que contava os pormenores da sua desgraça; sendo quase uma criança, tinha‑se escapado de casa dos seus pais para ir a um baile, e, quando regressava pelo bosque, depois de ter dançado toda a noite sem autorização, um trovão pavoroso abriu o céu em duas metades e por aquela greta saiu o relâmpago de enxofre que a converteu em aranha. O seu único alimento eram as bolinhas de carne moída que as almas caritativas quisessem deitar‑lhe na boca. Semelhante espectáculo, carregado de tanta verdade humana e de tão temível castigo, tinha de derrotar, sem premeditação, o de um anjo despeitoso que mal se dignava olhar para os mortais. Além disso, os raros milagres que se atribuíam ao anjo revelavam uma certa desordem mental, como o do cego que não recuperou a vista mas a quem apareceram três dentes novos, o do paralítico que não pôde andar mas esteve quase a ganhar a lotaria e o do leproso a quem nasceram girassóis nas feridas. Aqueles milagres de consolação, que mais pareciam divertimentos de troça, já tinham enfraquecido a reputação do anjo quando a mulher convertida em aranha acabou de a aniquilar.
Foi desta maneira que o padre Gonzaga se curou para sempre das insónias e o pátio de Pelayo voltou a ficar tão solitário como nos tempos em que choveu três dias e os caranguejos andavam pelos quartos.
Os donos da casa não tiveram nada que lamentar. Com o dinheiro arrecadado construíram uma mansão de dois andares, com balcões e jardins e com muros muito altos, para que não entrassem os caranguejos do Inverno, e com barras de ferro nas janelas, para que não entrassem os anjos. Pelayo instalou, além disso, uma criação de coelhos muito perto da povoação, renunciando para sempre ao seu mau emprego de aguazil, e Elisenda comprou uns sapatos acetinados com saltos altos e muitos vestidos de seda furta‑cor, como os que usavam as senhoras mais categorizadas nos domingos daqueles tempos. O galinheiro foi a única coisa que não mereceu atenção. Se alguma vez o lavaram com creolina e nele queimaram as lágrimas de mirra, não foi para prestar honras ao anjo, mas para conjurar a pestilência de esterqueira, que andava como um fantasma por toda a parte e estava a tornar velha a casa nova. Ao princípio, quando o menino começou a andar, tiveram cuidado para que não estivesse muito perto do galinheiro. Mas depois foram‑se esquecendo do temor e acostumando‑se à pestilência, e antes que o menino mudasse os dentes tinha‑se habituado a brincar dentro do galinheiro, cujos alambres apodrecidos caíam aos bocados. O anjo não foi menos desabrido para com ele do que para com o resto dos mortais, mas suportava as infâmias mais engenhosas com uma mansuetude de cão sem ilusões. Ambos contraíram a varicela ao mesmo tempo. O médico que tratou o menino não resistiu à tentação de auscultar o anjo e encontrou‑lhe tantos sopros no coração e tantos ruídos nos rins que não lhe pareceu possível que estivesse vivo. O que mais o assombrou, contudo, foi a lógica das suas asas. Pareciam tão naturais naquele organismo completamente humano que não podia compreender‑se porque não as tinham também os outros homens.
Quando o menino foi à escola, havia muito tempo que o sol e a chuva tinham desmantelado o galinheiro. O anjo andava a arrastar‑se por aqui e por ali, como um moribundo sem dono. Expulsavam‑no a vassouradas de um quarto e um momento depois encontravam‑no na cozinha. Parecia estar em tantos lugares ao mesmo tempo que chegaram a pensar que se desdobrava, que se repetia a si mesmo por toda a casa, e a exasperada Elisenda gritava, fora de si, que era uma desgraça viver naquele inferno cheio de anjos. Mal podia comer, os seus olhos de antiquário tinham‑se‑lhe tornado tão turvos que andava a tropeçar nas vigas que sustentavam o telhado e já não lhe restavam senão os ráquis pelados das últimas penas. Pelayo atirou‑lhe para cima uma manta e fez‑lhe a caridade de o deixar dormir no alpendre, e só então repararam que passava a noite com febres, delirando, em tartamudeios de norueguês velho. Foi essa uma das poucas vezes em que se alarmaram, porque pensavam que ia morrer e nem sequer a vizinha sábia tinha podido dizer‑lhes o que se fazia com os anjos mortos.
No entanto, não só sobreviveu ao seu pior Inverno como até pareceu melhor com os primeiros sóis. Permaneceu imóvel durante muitos dias no canto mais afastado do pátio, onde ninguém o visse, e em princípios de Dezembro começaram a nascer‑lhe nas asas umas penas grandes e duras, penas de passarão velho, que mais pareciam um novo percalço da decrepitude. Mas ele devia conhecer a razão dessas mudanças, porque tinha todo o cuidado para que ninguém as notasse e para que ninguém ouvisse as canções de navegantes que às vezes cantava sob as estrelas.
Uma manhã, Elisenda estava a cortar rodelas de cebola para o almoço, quando um vento que parecia do alto mar se meteu na cozinha. Então assomou‑se à janela e surpreendeu o anjo nas primeiras tentativas do voo. Eram tão desajeitadas que abriu com as unhas um sulco de arado nas hortaliças e esteve quase a deitar abaixo o alpendre, com aqueles adejos indignos que escorregavam na luz e não encontravam apoio no ar. Mas conseguiu ganhar altura. Elisenda exalou um suspiro de alívio, por ela e por ele, quando o viu passar por cima das últimas casas, sustentando‑se de qualquer maneira com um agourento esvoaçar de abutre senil. Continuou a vê‑lo até ter acabado de cortar a cebola, e continuou a vê‑lo até quando já não era possível que o pudesse ver, porque nesse momento já não era um estorvo na sua vida, mas um ponto imaginário no horizonte do mar.
Gabriel García Márquez - A incrível e triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada
terça-feira, 18 de dezembro de 2012
Vou-me embora pra Pasárgada!
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolhereiVou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra PasárgadaEm Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
Manuel Bandeira
segunda-feira, 17 de dezembro de 2012
domingo, 16 de dezembro de 2012
O Lobo da Estepe - Hermann Hesse
"Nada lhe posso dar, que já não exista em você mesmo, não posso abrir-lhe outro mundo de imagens além daquele que há em sua própria alma. Nada lhe posso dar, a não ser a oportunidade, o impulso, a chave. Eu o ajudarei a tornar visível seu próprio mundo, e isso é tudo."
sábado, 15 de dezembro de 2012
quarta-feira, 12 de dezembro de 2012
terça-feira, 11 de dezembro de 2012
segunda-feira, 10 de dezembro de 2012
domingo, 9 de dezembro de 2012
...
"[...] Partilhemo-nos nesse pão, despertando-nos em cada célula esse tornar-se manso do doce árduo sentido da vida."
Maria Carolina Jardim - Mamulengo
Ouvi Erik Satie, como ela sugeriu. E senti-me completamente envolvida tanto pela Gnosienne quanto pela epígrafe que aqui descrevo.
sábado, 8 de dezembro de 2012
Lobo da Estepe - Herman Hesse
"Haveria de ensinar-me a viver ou ensinar-me a morrer, haveria de tocar com sua mão firme e formosa meu coração transido, para que ele, em contato com a vida, de novo, florescesse ou se tornasse em cinzas."
domingo, 2 de dezembro de 2012
sexta-feira, 30 de novembro de 2012
domingo, 25 de novembro de 2012
sábado, 24 de novembro de 2012
sexta-feira, 23 de novembro de 2012
segunda-feira, 19 de novembro de 2012
sexta-feira, 16 de novembro de 2012
O Lobo da Estepe
"Arde então em mim um selvagem anseio de sensações fortes, um ardor pela vida desregrada, baixa, normal e estéril, bem como um desejo louco de destruir algo, seja um armazém ou uma catedral, ou a mim mesmo, de cometer loucuras temerárias, de arrancar a cabeleira a alguns ídolos venerandos, de entregar a um casal de estudantes rebeldes os ansiados bilhetes de passagem para Hamburgo, de violar uma jovem ou de torcer o pescoço a algum defensor da ordem e da lei."
Herman Hesse
quarta-feira, 14 de novembro de 2012
terça-feira, 13 de novembro de 2012
segunda-feira, 12 de novembro de 2012
"Surpresa mesmo no dia que vem depois de outro dia e a leve Íris encontra um menino dormindo no silêncio da sombra da árvore que tanto conhecia. E faz um tudo para não despertar o sono que embala o menino e ali ficar apenas olhando. Mas quis o vento, ou a invenção do autor, rodar o cata-vento que ela trazia nas mãos..."
André Neves
domingo, 11 de novembro de 2012
quarta-feira, 7 de novembro de 2012
domingo, 4 de novembro de 2012
Anti-valsa para Vinícius de Moraes
Não, ninguém olhou-a, e continuou a maldizer a vida como era seu jeito de sempre falar. E não ousou se fazer bonita,e ninguém convidou-a para rodar e muito menos, muito menos, usou seu vestido decotado que cheirava a guardado de tanto esperar. Nem foi a praça, para ninguém abraçar.e nem soube dançar, nem a felicidade iluminada...
E o mundo não compreendeu. E o dia não amanheceu.
A noite / 1
"Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada em minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta."
Eduardo Galeano - Livro dos Abraços
sábado, 3 de novembro de 2012
quarta-feira, 31 de outubro de 2012
É engraçado, quando fico cheia de desesperos erro os acentos, os S'es, entre outros, tamanha a inquietação. "Nada é teu" repito, mas acho que perco as palavras dentro de mim. Elas só existem para fora da boca. Dentro é só aquele vento louco que corre pelas minhas veias todas e se espalham pelos olhos. - Eu vento pelos olhos!, digo - e não consigo olhar, eu preciso me por abaixo para não perder o chão...para ver as palavras fugindo de mim...para me ver.
segunda-feira, 29 de outubro de 2012
A Escrita do Deus - o aleph
A Escrita do Deus
Jorge Luis Borges
O cárcere profundo e de pedra; sua forma de um hemisfério quase perfeito, embora o piso (também de pedra) seja algo menor que um círculo máximo, fato que de algum modo agrava os sentimentos de opressão e de grandeza. Um muro corta-o pelo meio; este, apesar de altíssimo, não toca a parte superior da abóbada; de um lado estou eu, Tzinacan, mago da pirâmide Qaholom, que Pedro de Alvadaro incendiou; do outro há um jaguar, que mede com secretos passos iguais o tempo e o espaço do cativeiro. Ao nível do chão, uma ampla janela com barrotes corta o muro central. Na hora sem sombra (o meio-dia), abre-se um alçapão no alto e um carcereiro que os anos foram apagando manobra uma roldana de ferro, e nos baixa, na ponta de um cordel, cântaros de água e pedaços de carne. A luz entra na abóbada; neste instante posso ver o jaguar.
Perdi o número dos anos que estou na treva; eu, que uma vez fui jovem e podia caminhar nesta prisão, não faço outra coisa senão aguardar, na postura de minha morte, o fim que os deuses me destinam. Com a longa faca de pedernal abri o peito das vítimas e agora não poderia, sem magia, levantar-me do pó.
Na véspera do incêndio da Pirâmide, os homens que desceram de altos cavalos me castigaram com metais ardentes para que revelasse o lugar de um tesouro escondido. Abateram, diante de meus olhos, a imagem do deus, mas este não me abandonou e me mantive silencioso entre os tormentos. Feriram-me, quebraram-me, deformaram-me e depois despertei neste cárcere, que não mais deixarei nesta vida mortal.
Premido pela fatalidade de fazer algo, de povoar de alguma forma o tempo, quis recordar, em minha sombra, tudo o que sabia. Gastei noites inteiras lembrando a ordem e o número de algumas serpentes de pedra ou a forma de uma árvore medicinal. Assim fui vencendo os anos, assim fui entrando na posse do que já era meu. Uma noite, senti que me aproximava de uma lembrança precisa; antes de ver o mar, o viajante sente uma agitação no sangue. Horas depois, comecei a avistar a lembrança; era uma das tradições do deus. Este, prevendo que no fim dos tempos ocorreriam muitas desventuras e ruínas, escreveu no primeiro dia da Criação uma sentença mágica, capaz de conjurar esses males. Escreveu-a de maneira que chegasse às mais distantes gerações e que não tocasse o azar. Ninguém sabe em que ponto a escreveu nem com que caracteres, mas consta-nos que perdura, secreta, e que um eleito a lerá. Considerei que estávamos, como sempre, no fim dos tempos e que meu destino de último sacerdote do deus me daria acesso ao privilégio de intuir essa escritura. O fato de que uma prisão me cercasse não me vedava esta esperança; talvez eu tivesse visto milhares de vezes a inscrição de Qaholom e só me faltasse entendê-la.
Esta reflexão me animou e logo me intuiu uma espécie de vertigem. No âmbito da terra existem formas antigas, formas incorruptíveis e eternas; qualquer uma delas podia ser o símbolo buscado. Uma montanha podia ser a palavra do deus, ou um rio ou o império ou a configuração dos astros. Mas no curso dos séculos as montanhas se aplainam e o caminho de um rio costuma desviar-se e os impérios conhecem mutações e estragos e a figura dos astros varia. No firmamento há mudança. A montanha e a estrela são indivíduos e os indivíduos caducam. Busquei algo mais tenaz, mais invulnerável. Pensei nas gerações do cereais, dos pastos, dos pássaros, dos homens. talvez em minha face estivesse escrita a magia, talvez eu mesmo fosse o fim de minha busca. Estava nesse afã quando recordei que o jaguar era um dos atributos do deus.
Então minha alma se encheu de piedade. Imaginei a primeira manhã do tempo, imaginei meu deus confiando a mensagem à pele viva dos jaguares, que se amariam e se gerariam eternamente, em cavernas, em canaviais, em ilhas, para que os últimos homens a recebessem. Imaginei essa rede de tigres, esse quente labirinto de tigres, dando horror aos prados e aos rebanhos para conservar um desenho. Na outra cela havia um jaguar; em sua proximidade percebi uma confirmação de minha conjectura e um secreto favor. Dediquei longos anos a aprender a ordem e a configuração das manchas. Cada cega jornada me concedia um instante de luz, e assim pude fixar na mente as negras formas que riscavam o pêlo amarelo. Algumas incluíam pontos; outras formavam raias transversais na face inferior das pernas; outras, anulares, se repetiam. Talvez fossem um mesmo som ou uma mesma palavra. Muitas tinham bordas vermelhas.
Não falarei das fadigas de meu labor. Mais de uma vez gritei à abóbada que era impossível decifrar aquele texto. Gradualmente, o enigma concreto que me atarefava me inquietou menos que o enigma genérico de uma sentença escrita por um deus. Que tipo de sentença (perguntei-me) construirá uma mente absoluta? Considerei que mesmo nas linguagens humanas não existe proposição que não envolva um universo inteiro; dizer o tigre é dizer os tigres que o geraram, os cervos e tartarugas que ele devorou, o pasto de que se alimentaram os cervos, a terra que foi a mãe do pasto, o céu que deu luz à terra. Considerei que na linguagem de um deus toda palavra enunciaria essa infinita concatenação dos fatos, e não de um modo implícito, mas explícito, e não de um modo progressivo, mas imediato. Com o tempo, a noção de uma sentença divina pareceu-me pueril ou blasfematória. Um deus, refleti, só deve dizer uma palavra e nessa palavra a plenitude. Nenhum som articulado por ele pode ser inferior ao universo ou menos que a soma do tempo. Sombras ou simulacros desse som, que eqüivale a uma linguagem e a quanto pode significar um linguagem, são as ambiciosas e pobres vozes humanas, tudo, mundo, universo.
Um dia ou uma noite - entre meus dias e minhas noites que diferença existe? - sonhei que no chão do cárcere havia um grão de areia. Voltei a dormir, indiferente; sonhei que despertava e que havia dois grãos de areia. Voltei a dormir, sonhei que os grãos de areia eram três. Foram, assim, multiplicando-se até encher o cárcere e eu morria sob este hemisfério de areia. Compreendi que estava sonhando; com um enorme esforço, despertei. O despertar foi inútil: a inumerável areia me sufocava. Alguém me disse: "Não despertaste para a vigília, mas para um sonho anterior. Esse sonho está dentro de outro, e assim até o infinito, que é o número dos grãos de areia. O caminho que terás que desandar é interminável e morrerás antes de haver despertado realmente".
Senti-me perdido. A areia me enchia a boca, mas grite: "Nenhuma areia sonhada pode matar-me nem existem sonhos dentro de sonhos". Um resplendor me despertou. Na treva superior abria-se um círculo de luz. Via a face e as mãos do carcereiro, a roldana, o cordel, a carne e os cântaros.
Um homem se confunde, gradualmente, com a forma de seu destino; um homem é, afinal, suas circunstâncias. mais que um decifrador ou um vingador, mais que um sacerdote do deus, eu era um encarcerado. Do incansável labirinto de sonhos regressei à dura prisão como à minha casa. Bendisse sua umidade, bendisse seu tigre, bendisse meu velho corpo dolorido, bendisse a treva e a pedra.
Então ocorreu o que não posso esquecer nem comunicar. Ocorreu a união com a divindade, com o universo (não sei se estas palavras diferem). O êxtase não repete seus símbolos; há quem tenha visto Deus num resplendor, há quem o tenha percebido numa espada ou nos círculos de uma rosa. Eu vi uma Roda altíssima, que não estava diante de meus olhos, nem atrás, nem nos lados, mas em todas as partes, a um só tempo. Essa Roda estava feita de água, mas era também de fogo, e era (embora visse a borda) infinita. Entretecidas, formavam-na todas as coisas que serão, que são e que foram, e eu era um dos fios dessa trama total, e Pedro de Alvarado, que me atormentou, era outro. Ali estavam as causas e os efeitos e me bastava ver essa roda para entender tudo, interminavelmente. Oh, felicidade de entender, maior que a de imaginar ou a de sentir! Vi o Universo e vi os íntimos desígnios do universo. Vi as origens narradas pelo Livro do Comum. Vi as montanhas que surgiram na água, vi os primeiros homens com seu bordão, vi as tinalhas que se voltaram contra os homens, vi os cães que lhes desfizeram os rostos. Vi o deus sem face que há por trás dos deuses. Vi infinitos processos que formavam uma só felicidade e, entendendo tudo, consegui também entender a escrita do tigre.
É uma fórmula de catorze palavras casuais (que parecem casuais) e me bastaria dizê-la em voz alta para ser todo-poderoso. Bastaria dizê-la para abolir este cárcere de pedra, para que o dia entrasse em minha noite, para ser jovem, para ser imortal, para que o tigre destruísse Alvarado, para afundar o santo punhal em peitos espanhóis, para reconstruir a pirâmide, para reconstruir o império. Quarenta sílabas, quatorze palavras, e eu, Tzinacan, regeria as terras que Montezuma regeu. Mas eu sei que nunca direi estas palavras, porque eu não me lembro de Tzinacan.
Que morra comigo o mistério que está escrito nos tigres. Quem entreviu o universo, quem entreviu os ardentes desígnios do universo não pode pensar num homem, em suas triviais venturas ou desventuras, mesmo que esse homem seja ele. Esse homem foi ele e agora não lhe importa. Que lhe importa a sorte daquele outro, que lhe importa a nação daquele outro, se ele agora é ninguém? Por isto não pronuncio a fórmula, por isso deixo que os dias me esqueçam, deitado na escuridão.
sexta-feira, 26 de outubro de 2012
quinta-feira, 25 de outubro de 2012
Sobre os Guarani Kaiowá
"A declaração de morte dos Guaranis Caiovás é “palavra que age”. Antes que o espasmo de nossa comoção de sofá migre para outra tragédia, talvez valha a pena uma última pergunta: para nós, o que é a palavra? "
Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista
quarta-feira, 24 de outubro de 2012
segunda-feira, 22 de outubro de 2012
" - É triste, a gente precisa de uma vida inteira para aprender a viver"
Do teatro "Porque não estou onde você está"
domingo, 21 de outubro de 2012
sábado, 20 de outubro de 2012
segunda-feira, 15 de outubro de 2012
sexta-feira, 12 de outubro de 2012
quinta-feira, 11 de outubro de 2012
Os teólogos - Jorge Luis Borges
Arrasado o jardim, profanados os cálices e os altares, entraram a cavalo os hunos na biblioteca monástica e rasgaram os livros incompreensíveis e os injuriaram e queimaram, talvez temerosos de que as letras encobrissem blasfêmias contra seu deus, que era uma cimitarra de ferro. Arderam palimpsestos e códices, mas no coração da fogueira, entre as cinzas, permaneceu quase intato o livro duodécimo da Civitas Dei, que narra que Platão ensinou em Atenas e, no fim dos séculos, todas as coisas recuperarão seu estado anterior, e que ele, em Atenas, diante do mesmo auditório, de novo ensinará essa doutrina. O texto que as chamas perdoaram desfrutou de veneração especial e os que o leram e releram nessa remota província esqueceram que o autor só declarou tal doutrina para poder melhor refutá-la. Um século depois, Aureliano, coadjutor de Aquiléia, soube que às margens do Danúbio a novíssima seita dos monótonos (chamados também anulares) professava que a história é um círculo e que nada é que não tenha sido e que não será. Nas montanhas, a Roda e a Serpente tinham deslocado a Cruz. Todos temiam, mas todos se confortavam com o boato de que João de Panonia, que se distinguira com um tratado sobre o sétimo atributo de Deus, ia impugnar tão abominável heresia.
Aureliano deplorou essas notícias, sobretudo a última. Sabia que em matéria teológica não há novidade sem perigo; depois refletiu que a tese de um tempo circular era demasiado dissímil, demasiado assombrosa para que o perigo fosse grave. (As heresias que devemos temer são as que podem confundir-se com a ortodoxia.) Mais lhe doeu a intervenção – a intrusão – de João de Panonia. Havia dois anos, ele usurpara com seu palavroso De Septima Affectione Dei Sive de Aeternitate um assunto da especialidade de Aureliano; agora, como se o problema do tempo lhe pertencesse, ia retificar, talvez com argumentos de Procusto, com triagas mais temíveis que a Serpente, os anulares… Nessa noite, Aureliano folheou o antigo diálogo de Plutarco sobre a cessação dos oráculos; no parágrafo vinte e nove, leu uma burla contra os estóicos que defendem um infinito ciclo de mundos, com infinitos sóis, luas, Apolos, Dianas e Poseidons. O achado pareceu-lhe prognóstico favorável; resolveu adiantar-se a João de Panonia e refutar os heréticos da Roda.
Há quem procure o amor de uma mulher para esquecer-se dela, para não pensar mais nela; Aureliano, da mesma forma, queria superar João de Panonia para curar-se do rancor que ele lhe infundia, não para fazer-lhe mal. Temperado pelo mero trabalho, pela construção de silogismos e pela invenção de injúrias, pelos nego e os autem e os nequaquam, pôde esquecer esse rancor. Erigiu vastos e quase inextricáveis períodos, entrecortados por incisos, em que a negligência e o solecismo pareciam formas de desdém. Da cacofonia fez um instrumento. Previu que João ia fulminar os anulares com gravidade profética; para não coincidir com ele, optou pelo escárnio. Agostinho tinha escrito que Jesus é a via reta que nos salva do labirinto circular em que andam os ímpios; Aureliano, laboriosamente trivial, comparou-os a Ixion, ao fígado de Prometeu, a Sísifo, àquele rei de Tebas que viu dois sóis, à gaguice, a louros, a espelhos, a ecos, a mulas de carga e a silogismos bicornutos. (As fábulas gentílicas perduravam, rebaixadas a adornos.) Como todo possuidor de uma biblioteca, Aureliano se sabia culpado de não conhecê-la até o fim; essa controvérsia permitiu-lhe chegar a um acordo com muitos livros que pareciam censurar sua incúria. Assim pôde engastar uma passagem da obra De Principiis de Orígenes, na qual se nega que Judas Iscariotes voltará a vender o Senhor, e Paulo, a presenciar o martírio de Estêvão em Jerusalém, e outra dos Academica Priora de Cícero, em que este zomba dos que sonham que, enquanto ele conversa com Lúculo, outros Lúculos e outros Cíceros, em número infinito, dizem exatamente o mesmo, em infinitos mundos iguais. Além disso, esgrimiu contra os monótonos o texto de Plutarco e denunciou o escândalo de que a um idólatra valesse mais o lumen naturae que a eles a palavra de Deus. Nove dias lhe tomou esse trabalho; no décimo, foi-lhe enviada uma cópia da refutação de João de Panonia.
Era quase irrisoriamente breve. Aureliano olhou-a com desdém e depois com temor. A primeira parte glosava os versículos finais do nono capítulo da Epístola aos Hebreus, na qual se diz que Jesus não foi sacrificado muitas vezes desde o início do mundo, senão agora uma vez na consumação dos séculos. A segunda alegava o preceito bíblico sobre as vãs repetições dos gentios (Mateus 6, 7) e aquela passagem do sétimo livro de Plínio, que pondera não haver no vasto universo duas faces iguais. João de Panonia declarava que tampouco há duas almas e que o pecador mais vil é precioso como o sangue que por ele verteu Jesus Cristo. O ato de um único homem (afirmou) pesa mais que os nove céus concêntricos, e imaginar que possa perder-se e voltar é uma aparatosa frivolidade. O tempo não refaz o que perdemos; a eternidade guarda-o para a glória e também para o fogo. O tratado era límpido, universal; não parecia redigido por uma pessoa específica, mas por qualquer homem ou, talvez, por todos os homens.
Aureliano sentiu uma humilhação quase física. Pensou em destruir ou reformar seu próprio trabalho; em seguida, com rancorosa probidade, mandou-o para Roma sem modificar uma letra. Meses depois, quando se reuniu o Concílio de Pérgamo, o teólogo encarregado de impugnar os erros dos monótonos foi (previsivelmente) João de Panonia; sua douta e comedida refutação bastou para que Euforbo, heresiarca, fosse condenado à fogueira. “Isto ocorreu e voltará a ocorrer”, disse Euforbo. “Não acendeis uma pira, acendeis um labirinto de fogo. Se aqui se unissem todas as fogueiras que eu tenho sido, não caberiam na terra e os anjos ficariam cegos. Isto eu falei muitas vezes.” Depois gritou, porque as chamas o atingiram.
Caiu a Roda diante da Cruz[1], mas Aureliano e João prosseguiram sua batalha secreta. Militavam os dois no mesmo exército, ansiavam pelo mesmo galardão, guerreavam contra o mesmo Inimigo, mas Aureliano não escreveu uma palavra que inconfessavelmente não pretendesse superar João. Seu duelo foi invisível; se os numerosos índices não me enganam, não figura uma única vez o nome do outro nos muitos volumes de Aureliano que a Patrologia de Migne entesoura. (Das obras de João, só permaneceram vinte palavras.) Os dois desaprovaram os anátemas do segundo Concílio de Constantinopla; os dois perseguiram os arianos, que negavam a geração eterna do Filho; os dois testemunharam a ortodoxia da Topographia Christiana de Cosmas, que ensina ser a terra quadrangular, como o tabernáculo hebreu. Desgraçadamente, pelos quatro ângulos da terra difundiu-se outra tempestuosa heresia. Oriunda do Egito ou da Ásia (porque os testemunhos diferem e Bousset não quer admitir as razões de Harnack), infestou as províncias orientais e erigiu santuários na Macedônia, em Cartago e em Tréveris. Parecia estar em todas as partes; foi dito que nas dioceses da Bretanha tinham sido invertidos os crucifixos e que a imagem do Senhor, em Cesaréia, viu-se suplantada por um espelho. O espelho e o óbolo eram emblemas dos novos cismáticos.
A história os conhece por muitos nomes (especulares, abismais, cainitas), mas de todos o mais aceito é histriões, dado por Aureliano e que eles com atrevimento adotaram. Na Frigia foram chamados de simulacros, e também na Dardânia. João Damasceno chamou-os de formas; é justo advertir que a passagem tem sido repelida por Erfjord. Não há heresiólogo que, com espanto, não aluda a seus desmedidos costumes. Muitos histriões professaram o ascetismo; um que outro se mutilou, como Orígenes; outros moraram debaixo da terra, nas cloacas; outros arrancaram os olhos; outros (os nabucodonosores de Nitria) “pastavam como os bois e seu cabelo crescia como as penas da águia”. Da mortificação e do rigor passavam, muitas vezes, ao crime; certas comunidades toleravam o roubo; outras, o homicídio; outras, a sodomia, o incesto e a bestialidade. Todas eram blasfemas; não só maldiziam o Deus cristão como as arcanas divindades de seu próprio panteão. Maquinaram livros sagrados, cujo desaparecimento os doutos deploram. Sir Thomas Browne, por volta de 1658, escreveu: “O tempo aniquilou os ambiciosos Evangelhos Histriônicos, não as Injúrias com que se fustigou sua Impiedade”; Erfjord sugeriu que essas “injúrias” (que um códice grego preserva) são os evangelhos perdidos. Isso é incompreensível, se ignoramos a cosmologia dos histriões.
Nos livros herméticos está escrito que o que existe embaixo é igual ao que existe em cima, e o que existe em cima, igual ao que existe embaixo; no Zohar, que o mundo inferior é reflexo do superior. Os histriões fundaram sua doutrina sobre uma perversão dessa idéia. Invocaram Mateus 6, 12 (“perdoa nossas dívidas, como nós perdoamos a nossos devedores”) e 11, 12 (“o reino dos céus adquire-se à força”) para demonstrar que a terra influi no céu, e I Coríntios 13,12 (“vemos agora como que por um espelho, em enigma”) para demonstrar que tudo o que vemos é falso. Talvez contaminados pelos monótonos, imaginaram que todo homem é dois homens e que o verdadeiro é o outro, o que está no céu. Também imaginaram que nossos atos projetam um reflexo invertido, de maneira que, se velamos, o outro dorme, se fornicamos, o outro é casto, se roubamos, o outro é generoso. Mortos, nos uniremos a ele e seremos ele. (Algum eco dessas doutrinas perdurou em Bloy.) Outros histriões discorreram que o mundo acabaria quando se esgotasse o número de suas possibilidades; já que não pode haver repetições, o justo deve eliminar (cometer) os atos mais infames, para que estes não manchem o futuro e para acelerar a vinda do reino de Jesus. Esse artigo foi negado por outras seitas, que defenderam que a história do mundo deve cumprir-se em cada homem. Os demais, como Pitágoras, deverão transmigrar por muitos corpos antes de conseguir sua liberação; alguns, os protéicos, “no termo de uma só vida são leões, são dragões, são javalis, são água e são uma árvore”. Demóstenes cita a purificação pela lama a que eram submetidos os iniciados nos mistérios órficos; os protéicos, analogicamente, procuraram a purificação pelo mal. Entenderam, como Carpócrates, que ninguém sairá da prisão até pagar o último óbolo (Lucas 12, 59), e costumavam ludibriar os penitentes com este outro versículo: “Eu vim para que os homens tenham vida e para que a tenham em abundância” (João 10,10). Também diziam que não ser malvado é soberba satânica… Muitas e divergentes mitologias urdiram os histriões; uns pregaram o ascetismo, outros a licenciosidade, todos a confusão. Teopompo, histrião de Berenice, negou todas as fábulas; disse que cada homem é um órgão que projeta a divindade para sentir o mundo.
Os hereges da diocese de Aureliano eram dos que afirmavam que o tempo não tolera repetições, não dos que afincoavam que todo ato se reflete no céu. Essa circunstância era estranha; em um relatório às autoridades romanas, Aureliano mencionou-a. O prelado que receberia o relatório era confessor da imperatriz; ninguém ignorava que esse ministério exigente lhe vedava as íntimas delícias da teologia especulativa. Seu secretário – antigo colaborador de João de Panonia, agora inimizado com ele – gozava do renome de pontualíssimo inquisidor de heterodoxias; Aureliano acrescentou uma exposição da heresia histriônica, tal como esta se dava nos conventículos de Gênova e de Aquiléia. Redigiu alguns parágrafos; quando quis escrever a tese horrível de que não existem dois instantes iguais, sua pena se deteve. Não encontrou a fórmula necessária; as admoestações da nova doutrina (“Queres ver o que não viram os olhos humanos? Olha a lua. Queres ouvir o que os ouvidos não ouviram? Ouve o grito do pássaro. Queres tocar o que não tocaram as mãos? Toca a terra. Digo, verdadeiramente, que Deus está por criar o mundo”) eram bastante afetadas e metafóricas para a transcrição. De repente, uma oração de vinte palavras apresentou-se a seu espírito. Escreveu-a, jubiloso; logo depois, inquietou-o a suspeita de que ela fosse de outro. No dia seguinte, lembrou-se de que a lera havia muitos anos no Adversus Annulares composto por João de Panonia. Verificou a citação; ali estava. A incerteza o atormentou. Alterar ou suprimir essas palavras era debilitar a expressão; deixá-las era plagiar um homem que ele abominava; indicar a fonte era denunciá-lo. Implorou o socorro divino. No princípio do segundo crepúsculo, seu anjo da guarda ditou-lhe uma solução intermédia. Aureliano conservou as palavras, mas lhes antepôs este aviso: “O que ladram agora os heresiarcas para confusão da fé, disse-o neste século um varão doutíssimo, com mais irreflexão que culpa”. Depois, aconteceu o temido, o esperado, o inevitável. Aureliano teve de declarar quem era esse varão; João de Panonia foi acusado de professar opiniões heréticas.
Quatro meses depois, um ferreiro de Aventino, alucinado pelos enganos dos histriões, pôs sobre os ombros de seu filhinho uma grande bola de ferro, a fim de que seu outro voasse. O menino morreu; o horror produzido por esse crime impôs uma irrepreensível severidade aos juízes de João. Este não quis retratar-se; repetiu que negar sua proposição era incorrer na pestilencial heresia dos monótonos. Não entendeu (não quis entender) que falar dos monótonos era falar do que já estava esquecido. Com insistência um tanto senil, desperdiçou os períodos mais brilhantes de suas velhas polêmicas; os juízes nem sequer ouviam aquilo que outrora os arrebatara. Em lugar de tratar de purificar-se da mais leve mácula de histrionismo, esforçou-se em demonstrar que a proposição de que o acusavam era rigorosamente ortodoxa. Discutiu com os homens de cuja sentença dependia sua sorte e cometeu a máxima grosseria de fazê-lo com talento e com ironia. No dia 26 de outubro, depois de uma discussão que durou três dias e três noites, sentenciaram-no a morrer na fogueira.
Aureliano presenciou a execução, porque não o fazer seria confessar-se culpado. O lugar do suplício era uma colina, em cujo verde pico havia uma estaca, fincada profundamente no solo, e em torno dela muitas achas de lenha. Um ministro leu a sentença do tribunal. Sob o sol das doze, João de Panonia jazia com o rosto no pó, lançando uivos bestiais. Arranhava a terra, mas os verdugos o ergueram, o despiram e por fim o amarraram ao pelourinho. Puseram-lhe à cabeça uma coroa de palha untada de enxofre; ao lado, um exemplar do pestilento Adversus Annulares. Chovera na noite anterior e a lenha ardia mal. João de Panonia rezou em grego e depois em um idioma desconhecido. A fogueira ia levá-lo quando Aureliano se atreveu a erguer os olhos. As chamas ardentes se detiveram; Aureliano, pela primeira e última vez, viu o rosto do odiado. Lembrou-lhe o de alguém, mas não pôde precisar de quem. Depois, as chamas o perderam; depois, gritou e foi como se um incêndio gritasse.
Plutarco conta que Júlio César chorou a morte de Pompeu; Aureliano não chorou a de João, mas sentiu aquilo que sentiria um homem curado de uma enfermidade incurável que já fosse parte de sua vida. Em Aquiléia, em Éfeso, na Macedônia, deixou que sobre si passassem os anos. Procurou os difíceis limites do Império, os rudes lamaçais e os contemplativos desertos, para que a solidão o ajudasse a entender seu destino. Numa cela mauritana, na noite carregada de leões, repensou a complexa acusação contra João de Panonia e justificou, pela enésima vez, o veredicto. Custou-lhe mais justificar sua tortuosa denúncia. Em Rusaddir pregou o anacrônico sermão Luz das Luzes Acesa na Carne de Um Réprobo. Em Hibérnia, em uma das cabanas de um monastério cercado pela selva, surpreendeu-o, numa noite até a alvorada, o rumor da chuva. Lembrou-se de uma noite romana em que fora surpreendido, também, por esse minucioso rumor. Um raio, ao meio-dia, incendiou as árvores e Aureliano pôde morrer como morrera João.
O final da história só pode ser narrado com metáforas, já que se passa no reino dos céus, onde não há tempo. Talvez fosse oportuno dizer que Aureliano conversou com Deus e que Este se interessa tão pouco por diferenças religiosas que o tomou por João de Panonia. Isso, entretanto, insinuaria uma confusão da mente divina. Mais correto é dizer que no paraíso Aureliano soube que, para a insondável divindade, ele e João de Panonia (o ortodoxo e o herege, o odiado e o que odeia, o acusador e a vítima) formavam uma única pessoa.
[ 1 ] Nas cruzes rúnicas os dois emblemas inimigos convivem entrelaçados.
O Aleph - Jorge Luis Borges
sábado, 6 de outubro de 2012
quarta-feira, 3 de outubro de 2012
terça-feira, 2 de outubro de 2012
O aleph
"Como Cornélio Agrippa, sou deus, sou herói, sou filósofo, sou demônio e sou mundo, o que é uma cansativa maneira de dizer que não sou."
Jorge Luis Borges - "O aleph"
"Passeava com dois amigos ao pôr-do-sol – o céu ficou de súbito vermelho-sangue – eu parei, exausto, e inclinei-me sobre a mureta– havia sangue e línguas de fogo sobre o azul escuro do fjord e sobre a cidade – os meus amigos continuaram, mas eu fiquei ali a tremer de ansiedade – e senti o grito infinito da Natureza"
Edward Munch sobre o quadro "O grito"
Edward Munch sobre o quadro "O grito"
segunda-feira, 1 de outubro de 2012
E a sensatez dela me absurda...
E a sensatez dela me absurda, pois devo admitir que está correta, embora ela nunca deixe de ser bagunça e eu uma confusão.
A vida é o Dukkha
"A vida é o Dukkha", espero nunca me esquecer disso, Tudo é excessivamente transitório, sem que eu tenha sequer uma chance de agarrar a realidade pelos cabelos sem que ela imediatamente me escape...é assim, mas estou bem, as vezes me alegro pois nem tudo, nem tudo é desespero.
domingo, 30 de setembro de 2012
Meu desespero é sem fim. Tento - em vão - manter a minha ira razoável. Virgínia colocou pedras nos bolsos e se atirou no rio Ouse. Não ouso fazer o mesmo, mas sou um vislumbre de seu desepero. Estou confusa, me desculpo pela minha arrogância e pela minha preguiça. Me desculpo por estar viva e não saber o que fazer com isso. Por ser sem jeito com as palavras e com os atos.
sábado, 29 de setembro de 2012
Noites Brancas
"[...] Como se atormentavam, como tinham medo, como era ingênuo e puro seu amor e como ( já percebe, Nástienka) as pessoas eram más! E será, meu Deus, que ele não a encontrou depois, longe das fronteiras de sua pátria, sob um céu estrangeiro, meridional, caloroso, na maravilhosa cidade eterna, no esplendor de um baile, ao som da música, num palazzo (sem dúvida, num palazzo), afogado num mar de chamas, nesse balcão coberto de mirto e rosas, onde ela, ao reconhecê-lo, tirou depressa sua máscara e, depois de sussurrar "Estou livre", começou a tremer e lançou-se aos braços dele gritando de entusiasmo; e , apertados um contra o outro, num instante esqueceram a dor, a separação, todos os tormentos, a casa sombria, o velho, o jardim lúgubre na pátria distante e o banco no qual ela, com um último beijo apaixonado, escapara de seus braços dormentes numa angústia cruel... [...]"
Dostoiévski
"[...]e ele não deseja nada porque está acima dos desejos, porque tem tudo consigo, porque está saciado, porque ele é o próprio artista de sua vida e cria a cada momento seguido um novo arbítrio. E tão fácil e naturalmente cria-se esse mundo fantástico, fabuloso! Como se tudo isso realmente não fosse um espectro!"
Dostoiévski - Noites Brancas
Dostoiévski - Noites Brancas
quinta-feira, 27 de setembro de 2012
"Porque estou viva e concedo-me o direito de não saber o que fazer com isso"
Agradeço-lhe por escrever sempre,"há sempre uma palavra para ser celebrada ou perdoada" dizia Galeano no seu pequeno conto da Celebração da Voz Humana. Ela diz para aquietar-me, mas como aquietar o que se tem dentro? acaso não sou eu sinônima de confusão? Isso sim! infundada e cheia de desesperos! (e tudo piorou quando conheci Pessoa ).
No fim das contas só sirvo mesmo é pra poesia, ou nem pra isso.
quarta-feira, 26 de setembro de 2012
sábado, 22 de setembro de 2012
sexta-feira, 21 de setembro de 2012
quarta-feira, 19 de setembro de 2012
segunda-feira, 17 de setembro de 2012
Afinal viu: sangue puro e roxo escorria de uma beterraba esmagada no chão.
Uma Aprendizagem - Clarice Lispector
domingo, 16 de setembro de 2012
sexta-feira, 14 de setembro de 2012
"Mas o que raios eu estou esperando???"
Leio Clarice. Distorço Pope. Rezo mantras. Anoto em cadernos pequenos o que preciso fazer. Canto baixo, esqueço as letras. Passo o cartão. Arrumo o quarto. Como bobagens. Visito minha mãe. Acabo. Recomeço. Ouço Cícero. "Mudo certezas de lugar". Espero. Ignoro. Me distraio com facilidade. Sinto medo. Tenho pesadelos. Expulso o gato da mesa. Penso que deveria fazer exercícios físicos. Fico em casa. Me importo. Finjo deixar de me importar. Me convenço as vezes. Vou ao supermercado. Passo protetor solar. Pago contas. Tomo um café com conhecidos. Esqueço a chave de casa. Leio Clarice. Distorço Pope...
quinta-feira, 13 de setembro de 2012
De Ulisses ela aprendera a ter coragem de ter fé - muita coragem, fé em quê? Na própria fé, que a fé pode ser um grande susto, pode significar cair no abismo, Lóri tinha medo de cair no abismo e segurava-se numa das mãos de Ulisses enquanto a outra mão de Ulisses empurrava-a para o abismo - em breve ela teria que soltar a mão menos forte do que a que a empurrava, e cair, a vida não é de se brincar porque em pleno dia se morre.
Uma Aprendizagem ou O livro dos Prazeres - Clarice Lispector
terça-feira, 11 de setembro de 2012
Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres
"Pois para esse mundo incompreensível eu fui criada, e eu mesma, também incompreensível."
Clarice Lispector
Clarice Lispector
segunda-feira, 10 de setembro de 2012
domingo, 9 de setembro de 2012
Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres
"Faz de conta que amava e era amada, faz de conta que não
precisava morrer de saudade...Faz de conta que vivia...faz de conta que
tudo o que tinha não era faz de conta..."
Clarice Lispector
terça-feira, 4 de setembro de 2012
Orixás
O orixá dela é xangô, disse-me que poderia jurar que o meu era oxóssi. Seja quem for, espero que olhem por nós.
sexta-feira, 31 de agosto de 2012
Cartas
"[...] Mas tenho como nítido que apesar de todas as mudanças eminentes somos as mesmas, e nos conhecemos, e nos queremos bem; como se não houvesse passado inverno algum. [...]"
quinta-feira, 30 de agosto de 2012
"Só rimo com o sobrenome dela"
Ela disse ter me curado, quiçá fosse mesmo...ou quase isso. De resto, devo me portar para merecê-la. Todos os dias.
segunda-feira, 27 de agosto de 2012
sábado, 25 de agosto de 2012
"Se ao menos dessa revolta, dessa angústia saísse alguma coisa que prestasse."
Tive vontade de reler Caio Fernando - acontece que a gente nunca se livra da literatura, por mais que queira - mas Caio Fernando pra mim já era ultrapassado, infantil, quiçá ,talvez, não soubesse mais entendê-lo, quiçá não quisesse compreender mesmo. Mudavam minhas perspectivas e o mundo me parecia mais simples embora eu nunca deixasse de ser aquela confusão. Pensava em Leminski: "Para cada bicho de sete-cabeças, há sete sem nenhuma." pensava em dizeres pequenos, mantras, como diziamos, para sustentar-me e não grandes vãs filosofias. Com Manoel comia o ínfimo com farinha, cultivava pequenos jardins que já não sabia mais no que iam dar...pensava em se entregar como se não houvesse modo de perder-me. Já havia me perdido, sempre me perdia. Recostava a cabeça no travesseiro, parecia pesado demais, difícil demais, e sua maior ambição era ser leve! (Como nunca tinha sido). Talvez a lithost a tivesse devorado, talvez só conseguisse viver sobre um regime de insustentável,mas necessária leveza. E relembro então Caio Fernando: "Talvez tudo, talvez nada." . E sei que nem tudo é sobre mim, mas ainda erro os pronomes.
sexta-feira, 24 de agosto de 2012
sábado, 18 de agosto de 2012
Margaridas
Prometeu-me margaridas, e depois, rogou-me proteção. Traria um vaso: - não que eu soubesse lidar, também, com elas - fez-me o tipo de promessa que se faz recente, com uma descoberta, uma epifania. Não sabia dizer-lhe se quando expostos ou escondidos, os medos e os segredos tinham mais força, mas estava disposta (envolvida, talvez, por uma loucura lúcida) a aceitar a proposta. E não importava o quanto durasse, pois havia, por fim, decidido a lançar-me...como se não houvesse modo de perder-me.
Quem nunca optou pelo definido que atire a primeira pedra.
"[...] A algum tempo lhe ocorria o mesmo, mas agora era uma distração diferente, porque seu pensamento estava embaçado por uma inquietação definida. [...]"
Funerais de Mamãe Grande - Gabriel García Márquez
Funerais de Mamãe Grande - Gabriel García Márquez
terça-feira, 14 de agosto de 2012
sexta-feira, 10 de agosto de 2012
Sobre canecas e chás - Léo Fressato
Eu não vim falar de amor,
Nem dizer que o destino foi quem nos juntou...
Eu não prometi cuidar e nem prometo agora,
Embora eu vá olhar com ternura pras tuas crias e pra caneca com chá...
Não peço pra namorar...
Você riria.
E eu morreria...
Sem ar.
Eu não vim pedir amor,
Nem me dei por vencido...
Cê sabe como é,
Sou teimoso de dar dó!
Só vim para dizer: no meu sertão não será sol...
Só vim para dizer: no meu sertão não será sol...
E vai chover...
E vai chover...
Sabe,
O meu amor é teu...
Não sei o que aconteceu,
Nem sei no que vai dar...
Sabe,
Só quero um beijo teu...
E que não diga adeus,
Para que eu possa voltar...
E eu voltarei!
Margaridas na mão, venho armado até os dentes!
Pra roubar teu coração
E colocá-lo rente ao meu...
Sabe,
Antes de terminar,
Minha moça, eu te digo:
Você vai ser feliz comigo...
Mesmo se o mundo acabar...
Mesmo se o avião cair...
Mesmo se a chuva alagar aqui...
Mesmo se a gente afogar...
E eu não vim falar de amor,
Nem dizer que o destino foi quem nos juntou...
Eu não prometi cuidar e nem prometo agora,
Embora eu vá olhar com ternura pras tuas crias e pra caneca com chá...
Não peço pra namorar...
Você riria.
E eu morreria...
Nem dizer que o destino foi quem nos juntou...
Eu não prometi cuidar e nem prometo agora,
Embora eu vá olhar com ternura pras tuas crias e pra caneca com chá...
Não peço pra namorar...
Você riria.
E eu morreria...
Sem ar.
Eu não vim pedir amor,
Nem me dei por vencido...
Cê sabe como é,
Sou teimoso de dar dó!
Só vim para dizer: no meu sertão não será sol...
Só vim para dizer: no meu sertão não será sol...
E vai chover...
E vai chover...
Sabe,
O meu amor é teu...
Não sei o que aconteceu,
Nem sei no que vai dar...
Sabe,
Só quero um beijo teu...
E que não diga adeus,
Para que eu possa voltar...
E eu voltarei!
Margaridas na mão, venho armado até os dentes!
Pra roubar teu coração
E colocá-lo rente ao meu...
Sabe,
Antes de terminar,
Minha moça, eu te digo:
Você vai ser feliz comigo...
Mesmo se o mundo acabar...
Mesmo se o avião cair...
Mesmo se a chuva alagar aqui...
Mesmo se a gente afogar...
E eu não vim falar de amor,
Nem dizer que o destino foi quem nos juntou...
Eu não prometi cuidar e nem prometo agora,
Embora eu vá olhar com ternura pras tuas crias e pra caneca com chá...
Não peço pra namorar...
Você riria.
E eu morreria...
terça-feira, 7 de agosto de 2012
"[...; No fim tudo será silêncio
"[...]No fim tudo será silêncio,
salvo onde o mar banhar nada."
Ricardo Reis - Fernando Pessoa
salvo onde o mar banhar nada."
Ricardo Reis - Fernando Pessoa
Perecíveis
Logo tudo iria desaparecer, afinal de contas, as coisas têm em sua natureza íntima a idéia última, ou o princípio fundamental, de saber-se estar só de passagem.
Já dizia o Fernando Pessoa...
"Arranco do pescoço uma mão que me sufoca. Vejo que na mão, com que a essa arranquei, me veio preso um laço que me caiu no pescoço com o gesto de libertação. Afasto, com cuidado, o laço, e é com as próprias mãos que quase me estrangulo."
domingo, 5 de agosto de 2012
Notas Para um livro bonito
algumas mulheres
quando as escavamos
não encontramos aqueles
típicos monstros de ventosas
mas odores de licor e pororoca
afrescos desenhados com o hálito
e o ferrão das lágrimas.
algumas mulheres mordemos
depois costuramos com relâmpagos.[...]
Luiz Felipe Leprevost
quando as escavamos
não encontramos aqueles
típicos monstros de ventosas
mas odores de licor e pororoca
afrescos desenhados com o hálito
e o ferrão das lágrimas.
algumas mulheres mordemos
depois costuramos com relâmpagos.[...]
Luiz Felipe Leprevost
sexta-feira, 3 de agosto de 2012
Dedicatória
Pois que dedico esta coisa aí ao antigo Schumann e sua doce Clara que são
hoje ossos, ai de nós. Dedico-me à cor rubra muito escarlate como o meu sangue
de homem em plena idade e portanto dedico-me a meu sangue. Dedico-me sobretudo
aos gnomos, anões, sílfides e ninfas que me habitam a vida. Dedico-me à saudade
de minha antiga pobreza, quando tudo era mais sóbrio e digno e eu nunca havia
comido lagosta. Dedico-me à tempestade de Beethoven. à vibração das cores
neutras de Bach. A Chopin que me amolece os ossos. A Stravinsky que me espantou
e com quem voei em fogo. A «Morte e Transfiguração», em que Richard Strauss me
revela um destino? Sobretudo dedico-me às vésperas de hoje a hoje, ao
transparente véu de Debussy, a Marlos Nobre, a Prokofiev, a Carl Orff, a
Schönberg, aos dodecafónicos, aos gritos rascantes dos electrónicos a todos
esses que em mim atingiram zonas assustadoramente inesperadas, todos esses
profetas do presente e que a mim me vaticinaram a mim mesmo a ponto de eu neste
instante explodir em: eu.[...]
Dedicatória do livro "A hora da estrela" de Clarice Lispector
(Lídia)sendo este amor, fugídio, como posso te prender em
mim? Se não aprendemos destas artes de amar? se não nos encontramos senão
deixando marcas de um algo desconhecido, que não nos diz, e que nos embriaga
com seu mistério, e que nos esmaga? Mas
Lídia, como posso te deixar partir? Se é da mesma a fonte que bebo, o doce e o
amargo, o antídoto e o veneno?
quarta-feira, 1 de agosto de 2012
Pedido quase uma prece
Senhor, ajudai-nos a construir a nossa casa
Com janelas de aurora e árvores no quintal -
Árvores que na primavera fiquem cobertas de flores
E ao crepúsculo fiquem cinzentas
como a roupa dos pescadores.
Com janelas de aurora e árvores no quintal -
Árvores que na primavera fiquem cobertas de flores
E ao crepúsculo fiquem cinzentas
como a roupa dos pescadores.
O que desejo é apenas uma casa.
Em verdade, Não é necessário que seja azul,
nem que tenha cortinas de rendas.
Em verdade, nem é necessário que tenha cortinas.
Quero apenas uma casa em uma rua sem nome.
Em verdade, Não é necessário que seja azul,
nem que tenha cortinas de rendas.
Em verdade, nem é necessário que tenha cortinas.
Quero apenas uma casa em uma rua sem nome.
Sem nome, porém honrada, Senhor.
Só não dispenso a árvore,
Porque é a mais bela coisa que
nos destes e a menos amarga.
Quero de minha janela sentir
os ventos pelos caminhos, e ver o sol
Só não dispenso a árvore,
Porque é a mais bela coisa que
nos destes e a menos amarga.
Quero de minha janela sentir
os ventos pelos caminhos, e ver o sol
Dourando os cabelos negros
e os olhos de minha amada.
e os olhos de minha amada.
Também a minha amada não dispenso, meu Senhor.
Em verdade ele é a parte mais importante deste poema.
Em verdade vos digo, e bastante constrangido,
Que sem ela a casa também eu não queria,
e voltava pra pensão.
Ao menos, na pensão, eu tenho meus amigos
E a dona é sempre uma senhora
do interior que tem uma filha alegre.
Eu adoro menina alegre,
e daí podeis muito bem deduzir
Que para elas eu corro nas minhas horas de
aflição.
Nas minhas solidões de amor e
nas minhas solidões do pecado
Sempre fujo para elas, quando não fujo delas, de noite,
E vou procurar prostitutas. Oh, Senhor vós bem sabeis
Como amarga a vida de um homem o carinho das prostitutas!
nas minhas solidões do pecado
Sempre fujo para elas, quando não fujo delas, de noite,
E vou procurar prostitutas. Oh, Senhor vós bem sabeis
Como amarga a vida de um homem o carinho das prostitutas!
Vós sabeis como tudo amarga
naquelas vestes amassadas
Por tantas mãos truculentas ou tímidas ou cabeludas
Vós bem sabeis tudo isso, e portanto permiti
Que eu continue sonhando com a minha casinha azul.
Permiti que eu sonhe com
a minha amada também, porque:
- De que me vale ter casa sem ter
mulher amada dentro?
Permiti que eu sonhe com uma que ame
andar sobre os montes descalça
E quando me vier beijar faça-o
como se vê nos cinemas...
O ideal seria uma que amasse fazer comparações
de nuvens com vestidos, e peixes com avião;
Que gostasse de passarinho pequeno,
gostasse de escorregar no corrimão da escada
E na sombra das tardes viesse pousar
Como a brisa nas varandas abertas...
O ideal seria uma menina boba:
que gostasse de ver folha cair de tarde...
Que só pensasse coisas leves que nem existem na terra,
E ficasse assustada quando ao cair da noite
Um homem lhe dissesse palavras misteriosas ...
O ideal seria uma criança sem dono,
que aparecesse como nuvem,
Que não tivesse destino nem nome -
senão que um sorriso triste
E que nesse sorriso estivessem encerrados
Toda a timidez e todo o espanto
das crianças que não têm rumo...
.............................................................................
Senhor, ajudai-nos a construir a nossa casa
Com janelas de aurora e árvores no quintal -
Árvores que na primavera fiquem cobertas de flores
E ao crepúsculo fiquem cinzentas
como a roupa dos pescadores...
Manoel de Barros
Assinar:
Postagens (Atom)