Pois que dedico esta coisa aí ao antigo Schumann e sua doce Clara que são
hoje ossos, ai de nós. Dedico-me à cor rubra muito escarlate como o meu sangue
de homem em plena idade e portanto dedico-me a meu sangue. Dedico-me sobretudo
aos gnomos, anões, sílfides e ninfas que me habitam a vida. Dedico-me à saudade
de minha antiga pobreza, quando tudo era mais sóbrio e digno e eu nunca havia
comido lagosta. Dedico-me à tempestade de Beethoven. à vibração das cores
neutras de Bach. A Chopin que me amolece os ossos. A Stravinsky que me espantou
e com quem voei em fogo. A «Morte e Transfiguração», em que Richard Strauss me
revela um destino? Sobretudo dedico-me às vésperas de hoje a hoje, ao
transparente véu de Debussy, a Marlos Nobre, a Prokofiev, a Carl Orff, a
Schönberg, aos dodecafónicos, aos gritos rascantes dos electrónicos a todos
esses que em mim atingiram zonas assustadoramente inesperadas, todos esses
profetas do presente e que a mim me vaticinaram a mim mesmo a ponto de eu neste
instante explodir em: eu.[...]
Dedicatória do livro "A hora da estrela" de Clarice Lispector