A alguns anos atrás, um homem que julgava compreender as asperezas do mundo havia me dado um conselho, ele disse: “É bom não colocar o coração nas coisas que quebram ou que a traça rói” e imediatamente passei a imaginar um universo inteiro feito de vidro e papelão ,e em seguida irremediavelmente eu comecei a ver traças em meu caderno, nas minhas roupas, nos armários da cozinha, atrás dos móveis, e espalhadas por toda casa, e ainda traças atravessando a rua, dirigindo carros, hasteando bandeiras, devorando postes e árvores, vi duas traças enormes roendo as paredes tortas da torre de Pisa, o colorido dos vitrais da Catedral de Notre Dame (aqueles laboriosamente descritos por Vitor Hugo), as formas sinuosas das construções do Gaudí, e também, traças viajando para a lua e apagando todas as estrelas, e só não as via devorando o escuro porque não se sabia o que aconteceria depois. Ademais, o escuro não caberia num estômago de traça, sei por que conheço seu sistema digestório, suas mandíbulas, seu abdômen repleto de segmentos, suas antenas multiarticuladas, e atrás, mais outras três antenas denominadas cercos. E então me lembrei das múmias dos faraós do Egito, dos astecas, aquelas que remontam quase 3mil anos atrás, confortavelmente recostadas em seus sarcófagos, em suas tumbas, provavelmente orgulhosas por terem driblado o apetite das traças, pois desde lá já havia essa preocupação no homem, de desaparecer, e me perguntei se era isso que aquele homem queria me dizer, se eu deveria então me revestir de um linho, me trancar em um quarto escuro e me esconder do destino fatal que é partir. Mas não era isso que eu queria para mim, eu queria somar em todas as coisas, mesmo que fosse para revestir o estômago faminto de uma traça, se é mesmo verdade que ao pó retornaremos, pois então que eu me perca no vento, e acabe repousando em uma sacada onde uma dona de casa irá me varrer para fora até eu encontrar o caminho das pedras e algo brotar em mim. Sorte nossa que as traças ainda não resolveram dominar o mundo, porque eu havia criado uma imagem apocalíptica na minha cabeça, toda ela encenada por traças e faraós, e era uma visão horrível, mas foi aí que eu decidi que já não me importava mesmo que as traças me devorassem inteirinha, já haviam levado meu coração a muito tempo...uma vez tentaram levar meus olhos, não conseguiram, levaram somente as minhas pálpebras, a conseqüência, o resultado, é o que digo.