quarta-feira, 30 de abril de 2014

Boa-sorte sou eu.

"(...)Daqui em diante não peço mais boa-sorte,
Boa-sorte sou eu.
Daqui em diante não lamento mais,
Não transfiro, não careço de nada;
Nada de queixas atrás das portas,
De bibliotecas, de tristonhas críticas;
Forte e contente vou eu
Pela estrada aberta.(...)"

Walt Whitman

(...) Poucos o tem tatuado no corpo não como adorno, mas como parte de sí mesmo, reencontrada, refeita.

Catrin Welz-Stein & Christian Schloe




segunda-feira, 28 de abril de 2014

Catherin Stein




Murilo Rubião - O homem do boné cinzento

"[...]
Eu não tirava os olhos do homem. Sua magreza me fascinava. Contudo, foi Artur que me chamou a atenção para um detalhe:
- Ele está ficando transparente.
Assustei-me. Através do corpo do homenzinho viam-se objetos que estavam no interior da casa: jarras de flores, livros, misturados com intestinos e rins. O coração parecia estar dependurado na maçaneta da porta, cerrada somente de um dos lados.
Também Artur emagrecia e nem por isso fiquei apreensivo. Anatólio tornara-se a minha única preocupação. As suas carnes se desfaziam rapidamente, enquanto meu irmão bufava, pleno de gozo:
- Olha! De tão magro, só tem perfil. Amanhã desaparecerá.

Às cinco horas da tarde do dia seguinte, o solteirão apareceu na varanda, arrastando-se com dificuldade. Nada mais tendo para emagrecer, seu crânio havia diminuído e o boné, folgado na cabeça, escorregara até os olhos. O vento fazia com que o corpo dobrasse sobre si mesmo. Teve um espasmo e lançou um jato de fogo, que varreu a rua. Artur, excitado, não perdia o lance, enquanto eu recuava atemorizado.
Por instantes, Anatólio se encolheu para, depois, tornar a vomitar. Menos que da primeira vez. Em seguida, cuspiu. No fim, já ansiado, deixou escorrer uma baba incandescente pelo tórax abaixo e incendiou-se. Restou a cabeça, coberta pelo boné. O cachimbo se apagava no chão.
- Não falei! - gritava Artur, exultante.
A sua voz foi ficando fina, longínqua. Olhando para o lugar onde ele se encontrava, vi que seu corpo diminuíra espantosamente. Ficara reduzido a alguns centímetros e, numa vozinha quase imperceptível, murmurava:
- Não falei, não falei.
Peguei-o com as pontas dos dedos antes que desaparecesse completamente. Retive-o por instantes. Logo se transformou numa bolinha negra, a rolar na minha mão."

domingo, 27 de abril de 2014

Sobre a impossibilidade de reter meus sentimentos, de desandança em desandança meu coração se vai, se esvai, na impossibilidade de reter qualquer coisa, é só no susto que a gente vive.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Acordo com sensação nova mas logo me lembro de pensar que o livre arbítrio é a grande maldade de Deus. E quem me salvará do livre arbítrio? E mais, quem me salvará do livre arbítrio alheio?

quinta-feira, 24 de abril de 2014

o salto

"[...] E num instante de profundo anseio, saltou no vazio para alcançar a estrela. Mas ainda pensou na impossibilidade de alcançá-la e caiu, arrebentando-se contra as rochas. Não sabia amar. Se no momento de saltar tivesse força de alma bastante para crer fixa e seguramente na obtenção de seu desejo, teria voado para o céu a encontrar sua estrela.[...]" 

Herman Hesse - "Demian"

Walt Whitman's Price

My body is not a single thing.

My body is, the body of all the things.
Cause we are connected.

From the beggining that never began,
To the end that will never end.
Cause we are connected.


My figure is not the figure of one,
My figure is my soul
my soul is myself as my body
and the body of every souls.

My flesh is not the flesh of me,
My flesh is not the flesh of one,
my flash is the flesh of
everybody
everysoul
if that are the grass,
the sky,
the mountain,
the human,
the animal,
the spirits of the trees
the spirits of the light.

The begginer was not me
but I was at the beggining
and I will be there too
until the end.
Because I am in everywhere
with everysoul.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Ele me dizia que já havia absurdo suficiente na realidade. Tricotava essências, bordava verdades como aquele teólogo que lhe falei, à trezentos anos atrás. Soberba, ele disse, afirmando que os demais não passavam de cópias imperfeitas do Grande Homero, que, "sequer existiu!", exclamou alto e vibrante soltando a convicção presa entre os dentes. Eu, de minha parte lhe disse que acabávamos logo perdendo as essências, não confiava em qualquer tipo de aprisionamento, seja nas palavras ou nos sentidos:- Se não vier de uma epifania, esqueça, disse-lhe.
Passados alguns minutos consentimos: jamais tivemos aquela conversa.

um conto

Saindo de um cais de madeira, eu entrava na canoa que estava quase no meio do lago. Olhei para a noite, e não me lembro que lua era, mas um lobo caminhava sobre a água.

domingo, 20 de abril de 2014

Fim

O tigre e o golfinho - que ela chamava Peixe - foram as únicas testemunhas do ocorrido: dormindo , Alice virou-se para o lado, enroscou-se no pijama e morreu sufocada.





Verônica Stigger - "O trágico e outras comedias"

Imagem - Christian Schloe - "The tea party"
Das desesperanças em meio a mais desesperanças: Salve o grande Augusto Matraga!

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Bela
esta manhã sem carência de mito,
e mel sorvido sem blasfêmia.

Bela
esta manhã ou outra possível,
esta vida ou outra invenção
sem, na sombra, fantasmas.


Umidade de areia adere ao pé.
Engulo o mar, que me engole.
Valvas, curvos pensamentos, matizes da luz
azul
completa
sobre formas constituídas.

Bela
a passagem do corpo, sua fusão
no corpo geral do mundo.

Vontade de cantar. Mas tão absoluta
que me calo, repleto.

Canto Esponjoso - Drummond

domingo, 6 de abril de 2014

Tudo parecia, paradoxalmente, perpétuo e perecível.
As certezas formuladas, os gestos proferidos pela minha mão, o próprio gosto, que se formava na minha boca já era outro, momentos depois. Os segundos eram a contradição extrema do tempo, porque o meu tempo, era o tempo de todas as eternidades.
Porque viver?
Porque gastar-se em certezas, em gestos? porque enjaular-se em um quando rumamos para o todo?
Porque o sangue nas veias?
Onde estou?
E o ocaso se fecha com mais uma sentença que todos inventaram.


sábado, 5 de abril de 2014

Magritte



"Cessar, dormir, substituir esta consciência intervalada por melhores coisas melancólicas ditas em segredo ao que me desconhecesse!... Cessar, passar fluido e ribeirinho, fluxo e refluxo de um mar casto, em costas visíveis na noite em que verdadeiramente se dormisse!... Cessar, ser incógnito e externo, movimento de ramos em áleas afastadas, ténue cair de folhas, conhecido no som mais que na queda, mar alto fino dos repuxos ao longe, e todo o indefinido dos parques na noite, perdidos entre emaranhamentos contínuos, labirintos naturais da treva!... Cessar, acabar finalmente, mas com uma sobrevivência translata, ser a página de um livro, a madeixa de um cabelo solto, o oscilar da trepadeira ao pé da janela entreaberta, os passos sem importância no cascalho fino da curva, o último fumo alto da aldeia que adormece, o esquecimento do chicote do carroceiro à beira matutina do caminho... O absurdo, a confusão, o apagamento - tudo que não fosse a vida...

E durmo, a meu modo, sem sono nem repouso, esta vida vegetativa da suposição, e sob as minhas pálpebras sem sossego paira, como a espuma quieta de um mar sujo, o reflexo longínquo dos candeeiros mudos da rua.



Durmo e desdurmo.

Do outro lado de mim, lá para trás de onde jazo, o silêncio da casa toca no infinito. Oiço cair o tempo, gota a gota, e nenhuma gota que cai se ouve cair. Oprime-me fisicamente o coração físico a memória, reduzida a nada, de tudo quanto foi ou fui. Sinto a cabeça materialmente colocada na almofada em que a tenho fazendo vale. A pele da fronha tem com a minha pele um contacto de gente na sombra. (...) "



Fernando Pessoa - O livro do Desassossego - Bernardo Soares