quinta-feira, 23 de junho de 2011

O outono permanece parte 2 (rascunho)

Quando éramos amigos, o outono gostava de me contar quantos pássaros haviam atravessado suas tardes.
Um dia o outono foi embora, e pensei que nunca mais fosse encontrar o outono. Foi quando que ele apareceu pra mim, nítido, tinha em sí uma calma branca, uma melancolia, típica do outono, e descobri, fora um descuido, uma aparição não calculada, desapercebida, por dentre as folhas secas da calçada, e o vento. Não quis avisar ao outono que ele tinha retornado, por que na verdade nunca quis que ele fosse embora, mas o outono não me pertence, o outono é do mundo, é de um algo, esse algo de que lhes havia falado.
Devo lhes confessar agora que menti quando disse que o outono tinha dias e noites de mesma duração. As minhas tardes com o outono duravam anos. E de noite, bem como as botucas, eu sonhava, não com pernas , mas com as tardes que passaria com o outono, até ele ir embora novamente. Menti também quando disse que o outono tinha ido embora repentinamente, eu sempre soube quando iria partir, ele me dizia:

-Hoje quando o sol mergulhar no horizonte, irei partir.

Mas eu nunca quis acreditar que o outono pudesse partir assim, que soubesse me deixar.
Descobri tardiamente que o outono podia ser tão rígido, tão rigoroso quanto o próprio inverno.

uni-verso

"Treme a folha no galho mais alto" - escrevo. Paro e sorvo, de olhos fechados, o cheiro bom da terra, do capim chovido... Parece que quer vir um poema... Abro os olhos e fico olhando, interrogativamente, a linha que escrevi no alto da página. Depois de longo instante, acrescento-lhe três pontinhos. Assim não ficará tão só enquanto aguarda as companheiras. O vento fareja-me a face como um cachorro. Eu farejo o poema. Ah, todo mundo sabe que a poesia está em toda parte, mas agora cabe toda ela na folha que treme.
Por que não caberia então em único verso? Um uni-verso.
Treme a folha no galho mais alto.
(O resto é paisagem...)
Mario Quintana

terça-feira, 21 de junho de 2011

O Coronel
Frente a batalha
Canta aos Lírios
- Estes, que estão aí, a altura do umbigo
(Acontece que o Coronel é de estatura mediana, mas não admite)

O Coronel, canta aos Lírios
Frente a batalha
Desafina um pouco, se cala
deixa que os pássaros o façam por ele
"Melhor assim" ele diz

O Coronel
                 Frente a batalha
Engraxa as botas
(obs: Isso porque por dentro já não há mais nada a se fazer)

e por fim:
O Coronel , frente a batalha
                                            Desiste
Trapaceia, pede água
Só desanda, não rima

poetas por aí

"Do mar a Marte
tenho que saber
qual rochedo me parte.
Qual parte
me é metade
Qual noite
já me é tarde"

Fred Roberty

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Expediente

"Não amo mais de segunda à sexta-feira
das 8 às 18 horas"

Marlene dos Santos

domingo, 19 de junho de 2011

José Paulo Paes

O aluno
São meus todos os versos já cantados:
A flor, a rua, as músicas da infância,
O líquido momento e os azulados
Horizontes perdidos na distância.
Intacto me revejo nos mil lados
De um só poema. Nas lâminas da estância
Circulam as memórias e a substância
De palavras, de gestos isolados.
São meus também, os líricos sapatos
De Rimbaud, e no fundo dos meus atos
Canta a doçura triste de Bandeira.
Drummond me empresta sempre o seu bigode,
Com Neruda, meu pobre verso explode
E as borboletas dançam na algibeira.

(in O Aluno, 1947, seu primeiro livro)


Madrigal
Meu amor é simples, Dora,
Como a água e o pão.
Como o céu refletido
Nas pupilas de um cão.

(in Cúmplices, 1951)

Dos Deslumbramentos

"Movia-se através das pessoas como um elefante inválido, com um interesse infantil pelo mecanismo interno de cada coisa, pois o mundo parecia, para ele, um imenso brinquedo de corda com o qual se inventava a vida" (12 Contos Peregrinos) G. G. Márquez, sobre Pablo Neruda

"Precisamos ver o mundo de tal modo que nele se combine uma idéia de deslumbramento com uma idéia de acolhimento. Precisamos nos deslumbrar com este mundo, sem nunca nos sentir meramente confortáveis" Chesterton

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Aluga-se

"Eu tinha acabado de ser apresentado a ela quando cometi a impertinência feliz de perguntar como havia feito para implantar-se de tal modo naquele mundo tão distante e diferente de seus penhascos de ventos do Quindío, e ela me respondeu de chofre:
- Eu me alugo para sonhar."

G. G. Márquez
TODAS AS COISAS
DO MUNDO NÃO
CABEM NUMA
IDEIA.MAS TU-
DO CABE NUMA
PALAVRA,NESTA
PALAVRA TUDO.

Arnaldo Antunes

terça-feira, 14 de junho de 2011

Retrato


Ficou tanto tempo admirando seus antepassados nas fotografias da família que quando se olhou no espelho viu que seu rosto havia envelhecido 60 anos, e descobriu que da noite para o dia havia perdido sua infância para viver das lembranças de outros.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

circuitos

[...]Como uma gangorra , duas extremidades, dois pesos desiguais, tentando encontrar um ponto de equilíbrio.
Dilata, comprime, sístole, diástole, o líquido passa primeiro pela veia cava superior, penetra no átrio direito, interrompido pela valva atrioventricular direita, que ao abrir permite a entrada do mesmo a segunda câmara escura do circuito interno do coração, denominando-se: ventrículo direito. [...]

Do teatro e dos sonhos

- Você não apareceu! Por que você não apareceu?
- Não apareci? Onde?
- No meu sonho, esta noite. Você não veio então eu tive que seguir sozinha, e no final acabei por esquecer de você, e quando descobri que tinha te esquecido me assustei, e me assustei tanto que acabei acordando.
- Então,sinto muito.
- Eu não quero suas desculpas, quero explicações...por que você não veio?
- Não sei bem ao certo, acho que era porque eu estava te esperando no meu sonho, onde você também não apareceu, mas eu fiquei esperando assim mesmo, e esperei por tanto tempo que não vi o outono passar. Não sentia mais frio nem calor, nem nada, parecia-me a um fantasma, sentado numa cadeira de balanço, uma estátua. E eu continuei dormindo, porque eu tinha que te esperar, entende?
- E por que você não foi atrás de mim para me parar?
- Eu não podia, eu não...
- Não importa, tudo bem, você sabe.
- Eu sei.
- Foi só um sonho.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Sobre a escrita

Esta palavra que escrevo é traço acostumado, exagero. Escrevendo é daonde enxergo maior as coisas. Onde pingo de chuva não é mais pingo de chuva. É cristal líquido, é oceano.
Escrever é acreditar estar vivo dentro do papel. É ser vítima da própria invenção. E saber que quando não são lidos
                                            os personagens dormem
                                                                               dentro dos livros.

domingo, 5 de junho de 2011

Gabriel García Márquez

"Não era febre" , insistiu, recobrando a compostura. "Além disso, no dia em que me sentir mal não me entrego às mãos de ninguém. Eu mesmo me jogo no lixo!"

(Ninguém escreve ao coronel)

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Do olhar místico

Ainda descomposta pela modorra causada pela insônia do dia anterior, ela aguardava pela sentença que seria anunciada agora por uma cigana que a lia em uma borra de café:
"Nada mal, nada mal...", ela disse:
- Finalmente você vai encontrar algo que sempre procurou mas que nunca soube o que era.
Com seu gênio um tanto inconformado e irritadiço ela respondeu:
-E a senhora pode me dizer como é que eu procurei por toda a minha vida algo de que nem sei?
Ela então sorriu largamente:
- É disso mesmo que eu estou falando!
Anos atrás tinha ouvido esta mesma prescrição de um velho curandeiro que cuidava da febre das moças e das más aparições:
"Não acredito em bulhufas!", exclamou sem piedade.
"Você pode não acreditar", ele disse, " mas é melhor prevenir" e assim lhe entregou um colar feito de cascas de sementes colhidas da serrapilheira em uma noite de lua cheia  que tirou do próprio pescoço. 
E o perfume da madeira foi se espalhando pela sua pele, adentrando por sua nuca até visitar seus fios de cabelo, castanhos , cor da terra, como eram também as sementes.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

O coronel perde a guerra

O coronel agora estava deitado em sua cama, inválido de guerra, pois haviam lhe amputado a perna direita até a altura da canela. Mas o coronel ainda sentia as dores das queimaduras da antiga perna e desejava arduamente coçar a perna fantasma.
-Dê-me a agulha de crochê!, ele disse.
-Não adiantaria nada, se fosse para você coçar sua perna deveria tê-la feito no passado, agora, ela já não existe mais.
-Bobagens! Eu ainda a sinto. Sinto tanto que poderia dar um chute nas suas canelas se conseguisse me levantar daqui!
- Tome a sopa coronel, e deixe de falar asneiras.
-"Espere!", disse ele em um tom de de agonia e desespero com duas lágrimas instaladas no cantos dos olhos, "O que fizeram com Ela?", a mulher suspirou:
- Pensaram em colocá-la em um vidro com alcool como se fosse um troféu de guerra para o inimigo, mas acabaram atirando-a aos cães da rua, que é como se desse no mesmo.
O coronel então voltou a se recostar no travesseiro de algodão, e enviou a boca uma colherada de sopa  nitidamente intragável.