quarta-feira, 28 de maio de 2014

Mês à mês, temos sangrado
Nós, as fêmeas
por séculos
A matéria nossa
que circula
esparramada
mês à mês
Portanto pode-se dizer
que o que de nós escorre
é bem mais vital
que o sal
que a dor que emana
dos olhos
mais visceral
que o sal
que a água.

"Não tem sol o céu, imenso teto de estanho, nem tem a terra fogueiras que a aqueçam. Jamais esteve esta estepe tão gelada e solitária." E. galeano

Canção de Guerra dos Incas

"Beberemos no crânio do traidor
e com seus dentes faremos um colar.
De seus passos faremos flautas,
de sua pele faremos um tambor.
Então dançaremos."

Memória do Fogo - E. Galeano

"E não será por feitiço, e sim por ânimo do coração e valentia dos braços" E. Galeano

domingo, 25 de maio de 2014

A magia

        "Uma velha muito velha, da aldeia dos tukuna, castigou as moças que lhe haviam negado comida. Durante a noite, arrebatou-lhes  os ossos das pernas e devorou-lhes a medula. Nunca mais as moças puderam caminhar.
        Lá na infância, pouco depois de nascer, a velha tinha recebido de uma rã os poderes do alívio e da vergonha. A rã tinha ensinado a velha muito velha a curar e a matar, a escutar as vozes que não se ouvem, e a ver as cores que não se veem. Aprendeu a defender-se antes de aprender a falar. Ainda não andava, e já sabia estar onde não estava, porque os raios do amor e do ódio atravessaram de um salto as mais espessas selvas e os rios mais fundos.
        Quando os tukuna cortaram sua cabeça, a velha recolheu em suas mãos o próprio sangue e soprou-o para o sol.
- A alma também entra em tí! - gritou.
        Desde então, o que mata recebe no corpo, embora não queira nem saiba, a alma de sua vítima."

Memória do Fogo - Eduardo Galeano

Imagem : Diário de Frida Kahlo


A Pachamama

No planalto andino, mama é a Virgem e mama é a terra e o tempo.
Fica zangada a terra, a mãe terra, a Pachamama, se alguém bebe sem lhe oferecer. Quando ela sente muita sede, quebra a botija e derrama o que está lá dentro.
A ela se oferece a placenta do recém-nascido, enterrando-a entre as flores, para que a criança viva; e para que o amor viva, os amantes enterram cachos de cabelos.
A deusa terra recolhe nos braços os cansados e os maltrapilhos que dela brotaram, e se abre para lhes dar refúgio no fim da viagem. Lá embaixo da terra, os mortos florescem.

Do livro "Memória do Fogo -As Caras E As Máscaras " de Eduardo Galeano

Imagem: Frida Kahlo -The Love Embrace of the Universe, the Earth (Mexico), Me, and Senor Xolotl


quinta-feira, 22 de maio de 2014

O nascimento do poema - Adélia Prado

O que existe são coisas,
não palavras. Por isso
te ouvirei
sem cansaço recitar em búlgaro
como olharei montanhas durante horas,
ou nuvens.
Sinais valem palavras,
palavras valem coisas,
coisas não valem nada.

Entender é um rapto,
é o mesmo que desentender.
Minha mãe morrendo,
não faltou a meu choro este arco-íris:
o luto irá bem com meus cabelos claros.

Granito, lápide, crepe,
são belas coisas ou palavras belas?
Mármore, sol, lixívia.
Entender me sequestra de palavras e de coisa,
arremessa-me ao coração da poesia.

Por isso escrevo os poemas
pra velar o que ameaça minha fraqueza mortal.

(...)
"Há uma fome em tí portentosa demais para o teu nome, e não é que cabe no teu desprezível buraco todas as tuas fomes?"

Hilda Hilst

quarta-feira, 21 de maio de 2014

A prova do que é real ou não, é o que eu sinto, não é?
Não importa se há verdade
A realidade não implica em verdade.
Não se sabe nem se a morte nos faz algum favor
se o eterno retorno, retornará mais uma vez
neste mesmo quarto, nesta mesma sala de estar
o mesmo sonho confuso, o mesmo pesadelo
o mesmo reflexo
no mesmo espelho.

domingo, 18 de maio de 2014

Sou discípula de Mersault, de Pessoa e do rei de Carmona
Carrego metralhadoras por trás dos meus olhos e dos meus dentes
Desacredito dos crentes mais do que das crenças
Tenho texturas de pedra dentro do peito
e um sono denso,
sem sonho que me console
nem realidade que me apeteça.

Bucowski

então queres ser um escritor?

se não sai de ti a explodir
apesar de tudo,
não o faças.
a menos que saia sem perguntar do teu
coração, da tua cabeça, da tua boca
das tuas entranhas,
não o faças.
se tens que estar horas sentado
a olhar para um ecrã de computador
ou curvado sobre a tua
máquina de escrever
procurando as palavras,
não o faças.
se o fazes por dinheiro ou
fama,
não o faças.
se o fazes para teres
mulheres na tua cama,
não o faças.
se tens que te sentar e
reescrever uma e outra vez,
não o faças.
se dá trabalho só pensar em fazê-lo,
não o faças.
se tentas escrever como outros escreveram,
não o faças.
se tens que esperar para que saia de ti
a gritar,
então espera pacientemente.
se nunca sair de ti a gritar,
faz outra coisa.
se tens que o ler primeiro à tua mulher
ou namorada ou namorado
ou pais ou a quem quer que seja,
não estás preparado.
não sejas como muitos escritores,
não sejas como milhares de
pessoas que se consideram escritores,
não sejas chato nem aborrecido e
pedante, não te consumas com auto-
— devoção.
as bibliotecas de todo o mundo têm
bocejado até
adormecer
com os da tua espécie.
não sejas mais um.
não o faças.
a menos que saia da
tua alma como um míssil,
a menos que o estar parado
te leve à loucura ou
ao suicídio ou homicídio,
não o faças.
a menos que o sol dentro de ti
te queime as tripas,
não o faças.
quando chegar mesmo a altura,
e se foste escolhido,
vai acontecer
por si só e continuará a acontecer
até que tu morras ou morra em ti.
não há outra alternativa.
e nunca houve.
Nada comunica nada. Nada soluciona, nada instiga. É uma grande falácia dizer, tanto quanto é falácia escutar. Obscurecer e duplificar. A desconstrução já não é mais subversiva, nem atrativa, nem inteligente.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Sabendo-se estar somente de passagem, ela ainda é parte do que não sei nomear. Depois do vento, só a lembrança do vento...perdura sem promessas no imaginário, no tempo , na memória.

terça-feira, 13 de maio de 2014


Rimas com nome de flor - canção

"Não é todo
destino
que vem bater
nesta porta

Nem é todo
o espinho
que vai brotar
nesta rosa

Não é nem
este choro
que vai tocar
nesta roda

Mas vem
comigo amor
que já chegou nossa hora."

segunda-feira, 12 de maio de 2014

"Tragam a minha camisa vermelha! ... assim, se eu for ferido, meus inimigos não verão meu sangue,"
É uma pena ter dentes tão afiados sem poder provar-te a carne, e raiva tão sofisticadamente construída no peito, sem nenhuma batalha à vista .

domingo, 11 de maio de 2014

quem não está preparado para perder, perde duas vezes.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Prece-escudo

"Quero teu escudo, tua prece
pra me abençoar

Sei que sou rascunho,
lembrança solta presa
no teu ar

tão longínquo e antigo, mas
Só teus olhos podem curar

teus olhos podem curar-me
Só..."

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Samba pra Rosa

Porque eu descuidei da rosa ela
voltou pra mim
E se eu descuidei da rosa não me perdoei
E por descuidar da rosa eu chorei
tantas vezes depois que a rosa se foi
embora

Porque eu descuidei da rosa ela
voltou pra mim
Porque eu descuidei da rosa ela
voltou pra mim
Pra eu cuidar da rosa
noutro jardim. <3

domingo, 4 de maio de 2014

Tudo se me evapora

"Tudo se me evapora. A minha vida inteira, as minhas recordações, a minha imaginação e o que contém, a minha personalidade, tudo se me evapora. Continuamente sinto que fui outro, que senti outro, que pensei outro. Aquilo a que assisto é um espectáculo com outro cenário. E aquilo a que assisto sou eu.

(...)
Como me conheci hoje o que me desconheci ontem? E tudo se me confunde num labirinto onde, comigo, me extravio de mim.

(...)

Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há entre mim e mim?"

Bernardo Soares - Fernando Pessoa - Livro do Desassossego
Havia um homem que se sabia tão desgraçado, tão infeliz, que resolveu vestir as roupas, os gestos, as feições de seu inimigo. Chegou a tal perfeição em sua tarefa de se tornar aquilo que mais odiava (exceto a sí mesmo) que chegou a convencer multidões por décadas e até na hora da morte quando foi enterrado pela segunda vez. Por muito tempo também não notaram que o mesmo nome pudesse ter duas covas no cemitério antigo, e só foram se dar conta quando tiveram que transportar os ossos para um novo lugar no cemitério. Dizia-se ele tão odioso, mas tão odioso de sí que chegou a acender velas e fazer sacrifícios animais, jejuar por semanas para os deuses mais sujos que arranjou, vestindo-se de branco, queimando ervas e besuntando-se com poções misteriosas que ardiam na pele. Com tantos sacrifícios deram-lhe a alcunha de santo, ainda que se fechasse em mórbidos e sangrentos rituais e não dirigisse a palavra a mais ninguém.

Abril, 2013.

sábado, 3 de maio de 2014

Chão

Não há limite que não seja por ele suportado.
Suporta todo o cansaço. Traições, fadiga, falhaços.
Aconteça o que acontecer tens um corpo que pesa;
e um chão, mudo, imóvel, que não desaparece.

Gonçalo Tavares

Preparando o Salto - Siba

"Não vejo nada que não tenha desabado
Nem mesmo entendo como estou de pé

Olhando um outro num espelho pendurado
Me reconheço, mas não sei quem é

Não ouço passos de ninguém entre os escombros
Nem mesmo insetos revirando o pó
Um vento seco me arrepia, encolho os ombros
Mas na verdade estou queimando só


Depois do fogo restam só fumaça e brasas
E eu tiro as cinzas do meu peito nu
Daqui a pouco meus dois braços serão asas
E eu me levanto renascido e cru


E mesmo aquela velha sombra ressecada
Que imita tantos quanto eu fui e sou
Ficou nos cacos do espelho aprisionada
De pés cortados não vai onde eu vou

Antes de nascerem as plumas
Com minhas unhas quero me arranhar
Pra ter riscado na pele
Um mapa tosco pra poder voltar


Vou passar
Como um santo mudo
Mirando o alto
Rindo
Preparando o salto
Deixando pra trás tudo"