quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

As cidades e a memória 4 (Zora)


"Depois de passar seis rios e três cadeias de montanhas surge Zora, cidade que quem a viu uma vez nunca mais pode esquecer.Mas não pode ela deixar como outras cidades memoráveis uma imagem fora do comum nas recordações. Zora tem a propriedade de ficar na memória ponto por ponto, na sucessão das ruas, e das casas ao longo das ruas, e das portas e das janelas das casas, embora não apresentando nelas belezas ou raridades particulares. O seu segredo é o modo como a vista percorre figuras que se sucedem como numa partitura musical em que não se pode mudar ou deslocar nenhuma nota. O homem que sabe de cor como é Zora, nas noites em que não consegue dormir imagina que anda pelas ruas e recorda a ordem em que se sucedem o relógio de cobre, o toldo à riscas do barbeiro, o repucho dos nove esguichos, a torre de vidro do astrónomo, o quiosque do vendedor de melancias, a estátua do eremita e do leão, o banho turco, o café da esquina, a travessa que dá para o porto. Esta cidade que nunca se apaga da mente é como uma armação ou um retículado em cujas casas cada um pode dispor as coisas como lhe aprouver recordar: nomes de homens ilustres, virtudes, números, classificações vegetais e minerais, datas de batalhas, constelações, partes de um discurso. Entre todas as noções e todos os pontos do itinerário poderá estabelecer um nexo de afinidades ou de contrastes que sirva de mnemónica, de referência instantânea para a sua memória. E assim é de maneira tal que os homens mais sábios do mundo são os que conhecem Zora de cor. Mas foi inutilmente que parti em viagem para visitar a cidade: obrigada a permanecer imóvel e igual a si própria para melhor ser recordada, Zora estagnou, desfez-se e desapareceu. A Terra esqueceu-a."

"Cidades Invisíveis" - Ítalo Calvino
Imagem: Pedro Cano