quarta-feira, 6 de novembro de 2013

"A primeira ponte de Constitución e a meus pés
O fragor de comboios que teciam labirintos de ferro.
E de súbito foi o Juízo Final. Do invisível horizonte
E do mais íntimo do ser, uma voz infinita
Disse estas coisas (estas coisas, não estas palavras,
Que são a minha pobre tradução temporal de uma só palavra):
— Estrelas, pão, bibliotecas orientais e ocidentais,
Naipes, tabuleiros de xadrez, galerias, clarabóias e caves,
Um corpo humano para andar pela terra,
Unhas que crescem na noite, na morte,
Sombra que esquece, atarefados espelhos que multiplicam,
Declives da música, a mais dócil das formas do tempo,
Fronteiras do Brasil e do Uruguai, cavalos e manhãs,
Um peso de bronze e um exemplar da Saga de Grettir,
Álgebra e fogo, a carga de Junín no teu sangue,
Dias mais populosos que Balzac, o olor da madressilva,
Amor e véspera de amor, recordações intoleráveis,
O sono como um tesouro enterrado, o liberal acaso
E a memória, que o homem não olha sem vertigem,
Tudo isso te foi dado, e também
O antigo alimento dos heróis:
A falsidade e a derrota e a humilhação
Em vão te prodigalizámos o oceano,
Em vão o sol, que os maravilhados olhos de Whitman contemplaram;
Desperdiçaste os anos e os anos desperdiçaram-te,
E não escreveste ainda o poema."

Jorge Luis Borges