"De uma carta jogada em cima da mesa sai uma linha que corre pela
tábua de pinho e desce por uma perna. Basta olhar bem para descobrir que
a linha cotinua pelo assoalho, sobe pela parede, entra numa lâmina que
reproduz um quadro de Boucher, desenha as costas de uma mulher reclinada
num divã e afinal foge do quarto pelo teto e desce pelo fio do
pára-raios até a rua. Ali é difícil segui-la por causa do trânsito, mas
prestando atenção a veremos subir pela roda do ônibus estacionado na
esquina e que vai até o porto. Lá ela desce pela meia de nylon da
passageira mais loura, entra no território hostil das alfândegas, sobe e
rasteja e ziguezagueia até o cais principal, e aí (mas é difícil
enxergá-la, só os ratos a seguem para subir a bordo) atinge o navio de
turbinas sonoras, corre pelas tábuas do convés de primeira classe, passa
com dificuldade a escotilha maior, e numa cabine onde um homem triste
bebe conhaque e ouve o apito da partida, sobe pela costura da calça,
pelo jaleco, desliza até o cotovelo, e com um derradeiro esforço se
insere na palma da mão direita, que nesse instante começa a fechar-se
sobre a culatra de um revólver."
Do livro "Histórias de Cronópios e Famas"