domingo, 18 de dezembro de 2011

Diálogos do espelho



Alugou um apartamento no centro da cidade. Três quartos, sendo que habitaria apenas um. Mandou tirar toda a mobília:-"Queimem tudo se for necessário", deixando apenas um espelho na parede de um deles. Nele podia ver-se inteiro. 
Se aproximou para roçar a barba e reparar pacientemente nos traços do próprio rosto, e se afastou para ver como se assentavam no corpo todo.
Afastado parecia melhor.
Talvez tivesse que ser assim ("como se morrer fosse doce") ou como um personagem de um capítulo de um livro que nunca termina. 
(Se aproximava e se afastava)- Como se dançasse, e sua imagem também dançava do outro lado do espelho.
E aos poucos iam sumindo, as linhas do rosto, todos os traços, até se transformar numa mancha lisa e uniforme.Nenhum sinal.

Nunca mudara de fato. 

Imagem: Juliette Binoche

sábado, 17 de dezembro de 2011

Como se morrer fosse doce

         E assim o fizera, apertando o gelo contra sua cabeça e depois o passando por entre os lábios (era sangue e não água). Quando lhe perguntaram o que pretendia ele respondeu: Nada, e se gostaria de ir a budapeste, e ele negou até o fim,e terminou por apertar a cabeça contra o gelo.
De súbito se deparou com o silêncio. Caiu em contradição consigo mesmo (era sangue e não água) e voltou a sua auto condenação diária, mas mesmo que o fizesse todos os dias, e esmagasse os miolos com dois tijolos não deteria o tremor das víceras, e nem guiaria o percurso de seus olhos (que o condenariam), ademais apertava também as unhas das mãos contra a própria pele, mas não lhe pertencia o esquecimento.
Encostou a cabeça sobre a pia, sorriu.
Como se morrer fosse doce.

Baseado no filme "Não Amarás" de Kieslowski
rugas despudoradas

entrei no armazém amarelo, modorrento. bruxuleante luz no teto. quase nada de produtos a venda. uma senhora. as rugas mastigavam, despudoradas, o seu rosto: protocolo carimbado pelo tempo.
cerveja preta, pedi.
foi buscar. nunca mais voltava. despejou o líquido em meu copo. pensei reconhecê-la. teimavam seus disfarces. foi atender as moscas, únicas clientes. o espelho da parede oposta ao balcão onde estava me eram úteis. expunham ainda mais a precariedade daquela presença: caroço humano.
lembra-se de mim?, pensei.
chamei-a. virou-se, quase não dobrável.
ela sabe que sou eu?, pensei.
anos atrás eu conheci uma menina, 14 anos.
ainda bebê, deu-me de presente.
não me reconhece?, perguntei.
fez uma expressão de dúvida fitando a rua como se de lá a resposta. passou as mãos sobre a toalha de plástico com flores apagadas limpando farelos de comida sobre a mesa.
nunca mais, filho, ninguém soube de mim, ela disse

Luiz Felipe Leprevost
Eram suas as derrotas. E também as vitórias.