quarta-feira, 31 de outubro de 2012

É engraçado, quando fico cheia de desesperos erro os acentos, os S'es, entre outros, tamanha a inquietação. "Nada é teu" repito, mas acho que perco as palavras dentro de mim. Elas só existem para fora da boca. Dentro é só aquele vento louco que corre pelas minhas veias todas e se espalham pelos olhos. - Eu vento pelos olhos!, digo - e não consigo olhar, eu preciso me por abaixo para não perder o chão...para ver as palavras fugindo de mim...para me ver.

"Eu e minha liberdade que não sei usar" Clarice Lispector

"Um homem é, afinal , suas circunstâncias"

Jorge Luis Borges

"Francis Baconismos"


O Barão de Munchhausen


segunda-feira, 29 de outubro de 2012

A Escrita do Deus - o aleph


A Escrita do Deus
Jorge Luis Borges
O cárcere profundo e de pedra; sua forma de um hemisfério quase perfeito, embora o piso (também de pedra) seja algo menor que um círculo máximo, fato que de algum modo agrava os sentimentos de opressão e de grandeza. Um muro corta-o pelo meio; este, apesar de altíssimo, não toca a parte superior da abóbada; de um lado estou eu, Tzinacan, mago da pirâmide Qaholom, que Pedro de Alvadaro incendiou; do outro há um jaguar, que mede com secretos passos iguais o tempo e o espaço do cativeiro. Ao nível do chão, uma ampla janela com barrotes corta o muro central. Na hora sem sombra (o meio-dia), abre-se um alçapão no alto e um carcereiro que os anos foram apagando manobra uma roldana de ferro, e nos baixa, na ponta de um cordel, cântaros de água e pedaços de carne. A luz entra na abóbada; neste instante posso ver o jaguar.
Perdi o número dos anos que estou na treva; eu, que uma vez fui jovem e podia caminhar nesta prisão, não faço outra coisa senão aguardar, na postura de minha morte, o fim que os deuses me destinam. Com a longa faca de pedernal abri o peito das vítimas e agora não poderia, sem magia, levantar-me do pó.
Na véspera do incêndio da Pirâmide, os homens que desceram de altos cavalos me castigaram com metais ardentes para que revelasse o lugar de um tesouro escondido. Abateram, diante de meus olhos, a imagem do deus, mas este não me abandonou e me mantive silencioso entre os tormentos. Feriram-me, quebraram-me, deformaram-me e depois despertei neste cárcere, que não mais deixarei nesta vida mortal.
Premido pela fatalidade de fazer algo, de povoar de alguma forma o tempo, quis recordar, em minha sombra, tudo o que sabia. Gastei noites inteiras lembrando a ordem e o número de algumas serpentes de pedra ou a forma de uma árvore medicinal. Assim fui vencendo os anos, assim fui entrando na posse do que já era meu. Uma noite, senti que me aproximava de uma lembrança precisa; antes de ver o mar, o viajante sente uma agitação no sangue. Horas depois, comecei a avistar a lembrança; era uma das tradições do deus. Este, prevendo que no fim dos tempos ocorreriam muitas desventuras e ruínas, escreveu no primeiro dia da Criação uma sentença mágica, capaz de conjurar esses males. Escreveu-a de maneira que chegasse às mais distantes gerações e que não tocasse o azar. Ninguém sabe em que ponto a escreveu nem com que caracteres, mas consta-nos que perdura, secreta, e que um eleito a lerá. Considerei que estávamos, como sempre, no fim dos tempos e que meu destino de último sacerdote do deus me daria acesso ao privilégio de intuir essa escritura. O fato de que uma prisão me cercasse não me vedava esta esperança; talvez eu tivesse visto milhares de vezes a inscrição de Qaholom e só me faltasse entendê-la.
Esta reflexão me animou e logo me intuiu uma espécie de vertigem. No âmbito da terra existem formas antigas, formas incorruptíveis e eternas; qualquer uma delas podia ser o símbolo buscado. Uma montanha podia ser a palavra do deus, ou um rio ou o império ou a configuração dos astros. Mas no curso dos séculos as montanhas se aplainam e o caminho de um rio costuma desviar-se e os impérios conhecem mutações e estragos e a figura dos astros varia. No firmamento há mudança. A montanha e a estrela são indivíduos e os indivíduos caducam. Busquei algo mais tenaz, mais invulnerável. Pensei nas gerações do cereais, dos pastos, dos pássaros, dos homens. talvez em minha face estivesse escrita a magia, talvez eu mesmo fosse o fim de minha busca. Estava nesse afã quando recordei que o jaguar era um dos atributos do deus.
Então minha alma se encheu de piedade. Imaginei a primeira manhã do tempo, imaginei meu deus confiando a mensagem à pele viva dos jaguares, que se amariam e se gerariam eternamente, em cavernas, em canaviais, em ilhas, para que os últimos homens a recebessem. Imaginei essa rede de tigres, esse quente labirinto de tigres, dando horror aos prados e aos rebanhos para conservar um desenho. Na outra cela havia um jaguar; em sua proximidade percebi uma confirmação de minha conjectura e um secreto favor. Dediquei longos anos a aprender a ordem e a configuração das manchas. Cada cega jornada me concedia um instante de luz, e assim pude fixar na mente as negras formas que riscavam o pêlo amarelo. Algumas incluíam pontos; outras formavam raias transversais na face inferior das pernas; outras, anulares, se repetiam. Talvez fossem um mesmo som ou uma mesma palavra. Muitas tinham bordas vermelhas.
Não falarei das fadigas de meu labor. Mais de uma vez gritei à abóbada que era impossível decifrar aquele texto. Gradualmente, o enigma concreto que me atarefava me inquietou menos que o enigma genérico de uma sentença escrita por um deus. Que tipo de sentença (perguntei-me) construirá uma mente absoluta? Considerei que mesmo nas linguagens humanas não existe proposição que não envolva um universo inteiro; dizer o tigre é dizer os tigres que o geraram, os cervos e tartarugas que ele devorou, o pasto de que se alimentaram os cervos, a terra que foi a mãe do pasto, o céu que deu luz à terra. Considerei que na linguagem de um deus toda palavra enunciaria essa infinita concatenação dos fatos, e não de um modo implícito, mas explícito, e não de um modo progressivo, mas imediato. Com o tempo, a noção de uma sentença divina pareceu-me pueril ou blasfematória. Um deus, refleti, só deve dizer uma palavra e nessa palavra a plenitude. Nenhum som articulado por ele pode ser inferior ao universo ou menos que a soma do tempo. Sombras ou simulacros desse som, que eqüivale a uma linguagem e a quanto pode significar um linguagem, são as ambiciosas e pobres vozes humanas, tudo, mundo, universo.
Um dia ou uma noite - entre meus dias e minhas noites que diferença existe? - sonhei que no chão do cárcere havia um grão de areia. Voltei a dormir, indiferente; sonhei que despertava e que havia dois grãos de areia. Voltei a dormir, sonhei que os grãos de areia eram três. Foram, assim, multiplicando-se até encher o cárcere e eu morria sob este hemisfério de areia. Compreendi que estava sonhando; com um enorme esforço, despertei. O despertar foi inútil: a inumerável areia me sufocava. Alguém me disse: "Não despertaste para a vigília, mas para um sonho anterior. Esse sonho está dentro de outro, e assim até o infinito, que é o número dos grãos de areia. O caminho que terás que desandar é interminável e morrerás antes de haver despertado realmente".
Senti-me perdido. A areia me enchia a boca, mas grite: "Nenhuma areia sonhada pode matar-me nem existem sonhos dentro de sonhos". Um resplendor me despertou. Na treva superior abria-se um círculo de luz. Via a face e as mãos do carcereiro, a roldana, o cordel, a carne e os cântaros.
Um homem se confunde, gradualmente, com a forma de seu destino; um homem é, afinal, suas circunstâncias. mais que um decifrador ou um vingador, mais que um sacerdote do deus, eu era um encarcerado. Do incansável labirinto de sonhos regressei à dura prisão como à minha casa. Bendisse sua umidade, bendisse seu tigre, bendisse meu velho corpo dolorido, bendisse a treva e a pedra.
Então ocorreu o que não posso esquecer nem comunicar. Ocorreu a união com a divindade, com o universo (não sei se estas palavras diferem). O êxtase não repete seus símbolos; há quem tenha visto Deus num resplendor, há quem o tenha percebido numa espada ou nos círculos de uma rosa. Eu vi uma Roda altíssima, que não estava diante de meus olhos, nem atrás, nem nos lados, mas em todas as partes, a um só tempo. Essa Roda estava feita de água, mas era também de fogo, e era (embora visse a borda) infinita. Entretecidas, formavam-na todas as coisas que serão, que são e que foram, e eu era um dos fios dessa trama total, e Pedro de Alvarado, que me atormentou, era outro. Ali estavam as causas e os efeitos e me bastava ver essa roda para entender tudo, interminavelmente. Oh, felicidade de entender, maior que a de imaginar ou a de sentir! Vi o Universo e vi os íntimos desígnios do universo. Vi as origens narradas pelo Livro do Comum. Vi as montanhas que surgiram na água, vi os primeiros homens com seu bordão, vi as tinalhas que se voltaram contra os homens, vi os cães que lhes desfizeram os rostos. Vi o deus sem face que há por trás dos deuses. Vi infinitos processos que formavam uma só felicidade e, entendendo tudo, consegui também entender a escrita do tigre.
É uma fórmula de catorze palavras casuais (que parecem casuais) e me bastaria dizê-la em voz alta para ser todo-poderoso. Bastaria dizê-la para abolir este cárcere de pedra, para que o dia entrasse em minha noite, para ser jovem, para ser imortal, para que o tigre destruísse Alvarado, para afundar o santo punhal em peitos espanhóis, para reconstruir a pirâmide, para reconstruir o império. Quarenta sílabas, quatorze palavras, e eu, Tzinacan, regeria as terras que Montezuma regeu. Mas eu sei que nunca direi estas palavras, porque eu não me lembro de Tzinacan.
Que morra comigo o mistério que está escrito nos tigres. Quem entreviu o universo, quem entreviu os ardentes desígnios do universo não pode pensar num homem, em suas triviais venturas ou desventuras, mesmo que esse homem seja ele. Esse homem foi ele e agora não lhe importa. Que lhe importa a sorte daquele outro, que lhe importa a nação daquele outro, se ele agora é ninguém? Por isto não pronuncio a fórmula, por isso deixo que os dias me esqueçam, deitado na escuridão.

...e em tempos de desepero rezam para um deus que desconhecem, que não os atende, pois não falam a sua língua...

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

No bem da verdade acho que esta decisão não é minha, nunca foi. Tudo está, e sempre esteve, nas mãos dela...

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Sobre os Guarani Kaiowá


"A palavra é a unidade mais densa que explica como se trama a vida para os povos chamados guarani e como eles imaginam o transcendente. As experiências da vida são experiências de palavra. Deus é palavra. (...) O nascimento, como o momento em que a palavra se senta ou provê para si um lugar no corpo da criança. A palavra circula pelo esqueleto humano. Ela é justamente o que nos mantém em pé, que nos humaniza. (...) Na cerimônia de nominação, o xamã revelará o nome da criança, marcando com isso a recepção oficial da nova palavra na comunidade. (...) As crises da vida – doenças, tristezas, inimizades etc. – são explicadas como um afastamento da pessoa de sua palavra divinizadora. Por isso, os rezadores e as rezadoras se esforçam para ‘trazer de volta’, ‘voltar a sentar’ a palavra na pessoa, devolvendo-lhe a saúde.(...) Quando a palavra não tem mais lugar ou assento, a pessoa morre e torna-se um devir, um não-ser, uma palavra-que-não-é-mais. (...) Ñe'ẽ e ayvu podem ser traduzidos tanto como ‘palavra’ como por ‘alma’, com o mesmo significado de ‘minha palavra sou eu’ ou ‘minha alma sou eu’. (...) Assim, alma e palavra podem adjetivar-se mutuamente, podendo-se falar em palavra-alma ou alma-palavra, sendo a alma não uma parte, mas a vida como um todo.”


"A declaração de morte dos Guaranis Caiovás é “palavra que age”. Antes que o espasmo de nossa comoção de sofá migre para outra tragédia, talvez valha a pena uma última pergunta: para nós, o que é a palavra? "



Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Os teólogos - Jorge Luis Borges

Arrasado o jardim, profanados os cálices e os altares, entraram a cavalo os hunos na biblioteca monástica e rasgaram os livros incompreensíveis e os injuriaram e queimaram, talvez temerosos de que as letras encobrissem blasfêmias contra seu deus, que era uma cimitarra de ferro. Arderam palimpsestos e códices, mas no coração da fogueira, entre as cinzas, permaneceu quase intato o livro duodécimo da Civitas Dei, que narra que Platão ensinou em Atenas e, no fim dos séculos, todas as coisas recuperarão seu estado anterior, e que ele, em Atenas, diante do mesmo auditório, de novo ensinará essa doutrina. O texto que as chamas perdoaram desfrutou de veneração especial e os que o leram e releram nessa remota província esqueceram que o autor só declarou tal doutrina para poder melhor refutá-la. Um século depois, Aureliano, coadjutor de Aquiléia, soube que às margens do Danúbio a novíssima seita dos monótonos (chamados também anulares) professava que a história é um círculo e que nada é que não tenha sido e que não será. Nas montanhas, a Roda e a Serpente tinham deslocado a Cruz. Todos temiam, mas todos se confortavam com o boato de que João de Panonia, que se distinguira com um tratado sobre o sétimo atributo de Deus, ia impugnar tão abominável heresia.
Aureliano deplorou essas notícias, sobretudo a última. Sabia que em matéria teológica não há novidade sem perigo; depois refletiu que a tese de um tempo circular era demasiado dissímil, demasiado assombrosa para que o perigo fosse grave. (As heresias que devemos temer são as que podem confundir-se com a ortodoxia.) Mais lhe doeu a intervenção – a intrusão – de João de Panonia. Havia dois anos, ele usurpara com seu palavroso De Septima Affectione Dei Sive de Aeternitate um assunto da especialidade de Aureliano; agora, como se o problema do tempo lhe pertencesse, ia retificar, talvez com argumentos de Procusto, com triagas mais temíveis que a Serpente, os anulares… Nessa noite, Aureliano folheou o antigo diálogo de Plutarco sobre a cessação dos oráculos; no parágrafo vinte e nove, leu uma burla contra os estóicos que defendem um infinito ciclo de mundos, com infinitos sóis, luas, Apolos, Dianas e Poseidons. O achado pareceu-lhe prognóstico favorável; resolveu adiantar-se a João de Panonia e refutar os heréticos da Roda.
Há quem procure o amor de uma mulher para esquecer-se dela, para não pensar mais nela; Aureliano, da mesma forma, queria superar João de Panonia para curar-se do rancor que ele lhe infundia, não para fazer-lhe mal. Temperado pelo mero trabalho, pela construção de silogismos e pela invenção de injúrias, pelos nego e os autem e os nequaquam, pôde esquecer esse rancor. Erigiu vastos e quase inextricáveis períodos, entrecortados por incisos, em que a negligência e o solecismo pareciam formas de desdém. Da cacofonia fez um instrumento. Previu que João ia fulminar os anulares com gravidade profética; para não coincidir com ele, optou pelo escárnio. Agostinho tinha escrito que Jesus é a via reta que nos salva do labirinto circular em que andam os ímpios; Aureliano, laboriosamente trivial, comparou-os a Ixion, ao fígado de Prometeu, a Sísifo, àquele rei de Tebas que viu dois sóis, à gaguice, a louros, a espelhos, a ecos, a mulas de carga e a silogismos bicornutos. (As fábulas gentílicas perduravam, rebaixadas a adornos.) Como todo possuidor de uma biblioteca, Aureliano se sabia culpado de não conhecê-la até o fim; essa controvérsia permitiu-lhe chegar a um acordo com muitos livros que pareciam censurar sua incúria. Assim pôde engastar uma passagem da obra De Principiis de Orígenes, na qual se nega que Judas Iscariotes voltará a vender o Senhor, e Paulo, a presenciar o martírio de Estêvão em Jerusalém, e outra dos Academica Priora de Cícero, em que este zomba dos que sonham que, enquanto ele conversa com Lúculo, outros Lúculos e outros Cíceros, em número infinito, dizem exatamente o mesmo, em infinitos mundos iguais. Além disso, esgrimiu contra os monótonos o texto de Plutarco e denunciou o escândalo de que a um idólatra valesse mais o lumen naturae que a eles a palavra de Deus. Nove dias lhe tomou esse trabalho; no décimo, foi-lhe enviada uma cópia da refutação de João de Panonia.
Era quase irrisoriamente breve. Aureliano olhou-a com desdém e depois com temor. A primeira parte glosava os versículos finais do nono capítulo da Epístola aos Hebreus, na qual se diz que Jesus não foi sacrificado muitas vezes desde o início do mundo, senão agora uma vez na consumação dos séculos. A segunda alegava o preceito bíblico sobre as vãs repetições dos gentios (Mateus 6, 7) e aquela passagem do sétimo livro de Plínio, que pondera não haver no vasto universo duas faces iguais. João de Panonia declarava que tampouco há duas almas e que o pecador mais vil é precioso como o sangue que por ele verteu Jesus Cristo. O ato de um único homem (afirmou) pesa mais que os nove céus concêntricos, e imaginar que possa perder-se e voltar é uma aparatosa frivolidade. O tempo não refaz o que perdemos; a eternidade guarda-o para a glória e também para o fogo. O tratado era límpido, universal; não parecia redigido por uma pessoa específica, mas por qualquer homem ou, talvez, por todos os homens.
Aureliano sentiu uma humilhação quase física. Pensou em destruir ou reformar seu próprio trabalho; em seguida, com rancorosa probidade, mandou-o para Roma sem modificar uma letra. Meses depois, quando se reuniu o Concílio de Pérgamo, o teólogo encarregado de impugnar os erros dos monótonos foi (previsivelmente) João de Panonia; sua douta e comedida refutação bastou para que Euforbo, heresiarca, fosse condenado à fogueira. “Isto ocorreu e voltará a ocorrer”, disse Euforbo. “Não acendeis uma pira, acendeis um labirinto de fogo. Se aqui se unissem todas as fogueiras que eu tenho sido, não caberiam na terra e os anjos ficariam cegos. Isto eu falei muitas vezes.” Depois gritou, porque as chamas o atingiram.
Caiu a Roda diante da Cruz[1], mas Aureliano e João prosseguiram sua batalha secreta. Militavam os dois no mesmo exército, ansiavam pelo mesmo galardão, guerreavam contra o mesmo Inimigo, mas Aureliano não escreveu uma palavra que inconfessavelmente não pretendesse superar João. Seu duelo foi invisível; se os numerosos índices não me enganam, não figura uma única vez o nome do outro nos muitos volumes de Aureliano que a Patrologia de Migne entesoura. (Das obras de João, só permaneceram vinte palavras.) Os dois desaprovaram os anátemas do segundo Concílio de Constantinopla; os dois perseguiram os arianos, que negavam a geração eterna do Filho; os dois testemunharam a ortodoxia da Topographia Christiana de Cosmas, que ensina ser a terra quadrangular, como o tabernáculo hebreu. Desgraçadamente, pelos quatro ângulos da terra difundiu-se outra tempestuosa heresia. Oriunda do Egito ou da Ásia (porque os testemunhos diferem e Bousset não quer admitir as razões de Harnack), infestou as províncias orientais e erigiu santuários na Macedônia, em Cartago e em Tréveris. Parecia estar em todas as partes; foi dito que nas dioceses da Bretanha tinham sido invertidos os crucifixos e que a imagem do Senhor, em Cesaréia, viu-se suplantada por um espelho. O espelho e o óbolo eram emblemas dos novos cismáticos.
A história os conhece por muitos nomes (especulares, abismais, cainitas), mas de todos o mais aceito é histriões, dado por Aureliano e que eles com atrevimento adotaram. Na Frigia foram chamados de simulacros, e também na Dardânia. João Damasceno chamou-os de formas; é justo advertir que a passagem tem sido repelida por Erfjord. Não há heresiólogo que, com espanto, não aluda a seus desmedidos costumes. Muitos histriões professaram o ascetismo; um que outro se mutilou, como Orígenes; outros moraram debaixo da terra, nas cloacas; outros arrancaram os olhos; outros (os nabucodonosores de Nitria) “pastavam como os bois e seu cabelo crescia como as penas da águia”. Da mortificação e do rigor passavam, muitas vezes, ao crime; certas comunidades toleravam o roubo; outras, o homicídio; outras, a sodomia, o incesto e a bestialidade. Todas eram blasfemas; não só maldiziam o Deus cristão como as arcanas divindades de seu próprio panteão. Maquinaram livros sagrados, cujo desaparecimento os doutos deploram. Sir Thomas Browne, por volta de 1658, escreveu: “O tempo aniquilou os ambiciosos Evangelhos Histriônicos, não as Injúrias com que se fustigou sua Impiedade”; Erfjord sugeriu que essas “injúrias” (que um códice grego preserva) são os evangelhos perdidos. Isso é incompreensível, se ignoramos a cosmologia dos histriões.
Nos livros herméticos está escrito que o que existe embaixo é igual ao que existe em cima, e o que existe em cima, igual ao que existe embaixo; no Zohar, que o mundo inferior é reflexo do superior. Os histriões fundaram sua doutrina sobre uma perversão dessa idéia. Invocaram Mateus 6, 12 (“perdoa nossas dívidas, como nós perdoamos a nossos devedores”) e 11, 12 (“o reino dos céus adquire-se à força”) para demonstrar que a terra influi no céu, e I Coríntios 13,12 (“vemos agora como que por um espelho, em enigma”) para demonstrar que tudo o que vemos é falso. Talvez contaminados pelos monótonos, imaginaram que todo homem é dois homens e que o verdadeiro é o outro, o que está no céu. Também imaginaram que nossos atos projetam um reflexo invertido, de maneira que, se velamos, o outro dorme, se fornicamos, o outro é casto, se roubamos, o outro é generoso. Mortos, nos uniremos a ele e seremos ele. (Algum eco dessas doutrinas perdurou em Bloy.) Outros histriões discorreram que o mundo acabaria quando se esgotasse o número de suas possibilidades; já que não pode haver repetições, o justo deve eliminar (cometer) os atos mais infames, para que estes não manchem o futuro e para acelerar a vinda do reino de Jesus. Esse artigo foi negado por outras seitas, que defenderam que a história do mundo deve cumprir-se em cada homem. Os demais, como Pitágoras, deverão transmigrar por muitos corpos antes de conseguir sua liberação; alguns, os protéicos, “no termo de uma só vida são leões, são dragões, são javalis, são água e são uma árvore”. Demóstenes cita a purificação pela lama a que eram submetidos os iniciados nos mistérios órficos; os protéicos, analogicamente, procuraram a purificação pelo mal. Entenderam, como Carpócrates, que ninguém sairá da prisão até pagar o último óbolo (Lucas 12, 59), e costumavam ludibriar os penitentes com este outro versículo: “Eu vim para que os homens tenham vida e para que a tenham em abundância” (João 10,10). Também diziam que não ser malvado é soberba satânica… Muitas e divergentes mitologias urdiram os histriões; uns pregaram o ascetismo, outros a licenciosidade, todos a confusão. Teopompo, histrião de Berenice, negou todas as fábulas; disse que cada homem é um órgão que projeta a divindade para sentir o mundo.
Os hereges da diocese de Aureliano eram dos que afirmavam que o tempo não tolera repetições, não dos que afincoavam que todo ato se reflete no céu. Essa circunstância era estranha; em um relatório às autoridades romanas, Aureliano mencionou-a. O prelado que receberia o relatório era confessor da imperatriz; ninguém ignorava que esse ministério exigente lhe vedava as íntimas delícias da teologia especulativa. Seu secretário – antigo colaborador de João de Panonia, agora inimizado com ele – gozava do renome de pontualíssimo inquisidor de heterodoxias; Aureliano acrescentou uma exposição da heresia histriônica, tal como esta se dava nos conventículos de Gênova e de Aquiléia. Redigiu alguns parágrafos; quando quis escrever a tese horrível de que não existem dois instantes iguais, sua pena se deteve. Não encontrou a fórmula necessária; as admoestações da nova doutrina (“Queres ver o que não viram os olhos humanos? Olha a lua. Queres ouvir o que os ouvidos não ouviram? Ouve o grito do pássaro. Queres tocar o que não tocaram as mãos? Toca a terra. Digo, verdadeiramente, que Deus está por criar o mundo”) eram bastante afetadas e metafóricas para a transcrição. De repente, uma oração de vinte palavras apresentou-se a seu espírito. Escreveu-a, jubiloso; logo depois, inquietou-o a suspeita de que ela fosse de outro. No dia seguinte, lembrou-se de que a lera havia muitos anos no Adversus Annulares composto por João de Panonia. Verificou a citação; ali estava. A incerteza o atormentou. Alterar ou suprimir essas palavras era debilitar a expressão; deixá-las era plagiar um homem que ele abominava; indicar a fonte era denunciá-lo. Implorou o socorro divino. No princípio do segundo crepúsculo, seu anjo da guarda ditou-lhe uma solução intermédia. Aureliano conservou as palavras, mas lhes antepôs este aviso: “O que ladram agora os heresiarcas para confusão da fé, disse-o neste século um varão doutíssimo, com mais irreflexão que culpa”. Depois, aconteceu o temido, o esperado, o inevitável. Aureliano teve de declarar quem era esse varão; João de Panonia foi acusado de professar opiniões heréticas.
Quatro meses depois, um ferreiro de Aventino, alucinado pelos enganos dos histriões, pôs sobre os ombros de seu filhinho uma grande bola de ferro, a fim de que seu outro voasse. O menino morreu; o horror produzido por esse crime impôs uma irrepreensível severidade aos juízes de João. Este não quis retratar-se; repetiu que negar sua proposição era incorrer na pestilencial heresia dos monótonos. Não entendeu (não quis entender) que falar dos monótonos era falar do que já estava esquecido. Com insistência um tanto senil, desperdiçou os períodos mais brilhantes de suas velhas polêmicas; os juízes nem sequer ouviam aquilo que outrora os arrebatara. Em lugar de tratar de purificar-se da mais leve mácula de histrionismo, esforçou-se em demonstrar que a proposição de que o acusavam era rigorosamente ortodoxa. Discutiu com os homens de cuja sentença dependia sua sorte e cometeu a máxima grosseria de fazê-lo com talento e com ironia. No dia 26 de outubro, depois de uma discussão que durou três dias e três noites, sentenciaram-no a morrer na fogueira.
Aureliano presenciou a execução, porque não o fazer seria confessar-se culpado. O lugar do suplício era uma colina, em cujo verde pico havia uma estaca, fincada profundamente no solo, e em torno dela muitas achas de lenha. Um ministro leu a sentença do tribunal. Sob o sol das doze, João de Panonia jazia com o rosto no pó, lançando uivos bestiais. Arranhava a terra, mas os verdugos o ergueram, o despiram e por fim o amarraram ao pelourinho. Puseram-lhe à cabeça uma coroa de palha untada de enxofre; ao lado, um exemplar do pestilento Adversus Annulares. Chovera na noite anterior e a lenha ardia mal. João de Panonia rezou em grego e depois em um idioma desconhecido. A fogueira ia levá-lo quando Aureliano se atreveu a erguer os olhos. As chamas ardentes se detiveram; Aureliano, pela primeira e última vez, viu o rosto do odiado. Lembrou-lhe o de alguém, mas não pôde precisar de quem. Depois, as chamas o perderam; depois, gritou e foi como se um incêndio gritasse.
Plutarco conta que Júlio César chorou a morte de Pompeu; Aureliano não chorou a de João, mas sentiu aquilo que sentiria um homem curado de uma enfermidade incurável que já fosse parte de sua vida. Em Aquiléia, em Éfeso, na Macedônia, deixou que sobre si passassem os anos. Procurou os difíceis limites do Império, os rudes lamaçais e os contemplativos desertos, para que a solidão o ajudasse a entender seu destino. Numa cela mauritana, na noite carregada de leões, repensou a complexa acusação contra João de Panonia e justificou, pela enésima vez, o veredicto. Custou-lhe mais justificar sua tortuosa denúncia. Em Rusaddir pregou o anacrônico sermão Luz das Luzes Acesa na Carne de Um Réprobo. Em Hibérnia, em uma das cabanas de um monastério cercado pela selva, surpreendeu-o, numa noite até a alvorada, o rumor da chuva. Lembrou-se de uma noite romana em que fora surpreendido, também, por esse minucioso rumor. Um raio, ao meio-dia, incendiou as árvores e Aureliano pôde morrer como morrera João.
O final da história só pode ser narrado com metáforas, já que se passa no reino dos céus, onde não há tempo. Talvez fosse oportuno dizer que Aureliano conversou com Deus e que Este se interessa tão pouco por diferenças religiosas que o tomou por João de Panonia. Isso, entretanto, insinuaria uma confusão da mente divina. Mais correto é dizer que no paraíso Aureliano soube que, para a insondável divindade, ele e João de Panonia (o ortodoxo e o herege, o odiado e o que odeia, o acusador e a vítima) formavam uma única pessoa.
[ 1 ] Nas cruzes rúnicas os dois emblemas inimigos convivem entrelaçados.

O Aleph - Jorge Luis Borges

Rafael Sica

sábado, 6 de outubro de 2012

Borges é um gênio que nos escapa quando não o lemos. Não fosse meus caprichos literários, talvez não o conhecesse.
Temos os mesmos tipos de crendices, superstições e ímpetos. Sei ler seus pensamentos, e nos amamos ("amamos") não pela cobrança, mas pela saudade.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

O aleph

"Como Cornélio Agrippa, sou deus, sou herói, sou filósofo, sou demônio e sou mundo, o que é uma cansativa maneira de dizer que não sou."

Jorge Luis Borges - "O aleph"
"Passeava com dois amigos ao pôr-do-sol – o céu ficou de súbito vermelho-sangue – eu parei, exausto, e inclinei-me sobre a mureta– havia sangue e línguas de fogo sobre o azul escuro do fjord e sobre a cidade – os meus amigos continuaram, mas eu fiquei ali a tremer de ansiedade – e senti o grito infinito da Natureza"

Edward Munch sobre o quadro "O grito"

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Talvez seja preciso entender a maldade para escolher a pureza...

E a sensatez dela me absurda...

E a sensatez dela me absurda, pois devo admitir que está correta, embora ela nunca deixe de ser bagunça e eu uma confusão.

A vida é o Dukkha

"A vida é o Dukkha", espero nunca me esquecer disso, Tudo é excessivamente transitório, sem que eu tenha sequer uma chance de agarrar a realidade pelos cabelos sem que ela imediatamente me escape...é assim, mas estou bem, as vezes me alegro pois nem tudo, nem tudo é desespero.